Daniel Oliveira e a justiça self-service
Daniel confirma o sentimento – “deixo-lhe o meu desejo: que se prove, sem margem para dúvidas, que José Sócrates não fez o que se diz que fez (…) porque isso significaria que Portugal não tinha tido um primeiro-ministro corrupto” – mas depois avança para uma reflexão sobre a justiça que eu não teria qualquer dificuldade em subscrever.
E esta é a parte realmente curiosa: porque é que eu discordo profundamente da atitude de Daniel Oliveira em relação a José Sócrates, se depois concordo com a sua argumentação em relação às críticas que ele faz à justiça portuguesa? A resposta a esta pergunta é essencial para desmontar a retórica piedosa em redor do ex-primeiro-ministro. E a resposta é esta: porque as questões da justiça e da sua relação com a comunicação social são manipuladas ao sabor das nossas conveniências e das nossas convicções. A coisa funciona da seguinte forma: se eu acredito (ou quero acreditar) que alguém é culpado – por exemplo, Ricardo Salgado ou Paulo Portas –, eu centro a minha atenção nos indícios de culpa dessas pessoas e desvalorizo todas as questões em torno da presunção de inocência ou das fugas ao segredo de justiça; se, pelo contrário, eu acredito (ou quero acreditar) que alguém é inocente – por exemplo, José Sócrates –, aí as questões da presunção de inocência ou das fugas ao segredo de justiça passam a ocupar o primeiro plano da minha argumentação. Se eu não gosto do acusado, discuto o caso. Se eu gosto do acusado, discuto a justiça.
Esta é uma forma simples, mas muito eficaz, de escapar àquilo que não nos interessa debater. Até porque as fugas ao segredo de justiça são um trunfo que resulta sempre: não há forma de poderem ser defendidas por alguém com dois dedos de testa. É óbvio que são uma vergonha. É óbvio que não deviam acontecer. É óbvio que são uma tentativa de manipular a opinião pública. Só que, no caso em apreço, também é óbvio que são um argumento que dá imenso jeito a certos comentadores para não discutirem o que mais importa: a credibilidade de José Sócrates, a (in)coerência da sua defesa e, em última análise, a forma como ele se moveu e se impôs na política portuguesa – o que inclui igualmente o modo como conseguiu cativar tantos colunistas, que menorizaram o perigo que ele representava para Portugal, fascinados que estavam pelo seu carisma, pela sua voz de timoneiro e pela sua “coragem”.
Eu só conheço duas formas de não nos embrulharmos nesta confusão: 1) não entressachar as regras da justiça com as regras do espaço público, porque os mesmos que temem a justicialização da política são muitas vezes os que promovem a justicialização da comunicação social, invocando recorrentemente o sacrossanto princípio da presunção de inocência no debate mediático, como se um comentador estivesse submetido às regras de um juiz e só pudesse opinar sobre um caso após sentença transitada em julgado); 2) manter sempre uma linha de argumentação homogénea, que seja válida tanto para Sócrates como para Salgado, porque a justiça não pode ser usada em regime self-service, onde cada um só tira o que lhe apetece, consoante o apetite e a companhia.