Crianças e medicamentos
Num artigo escrito em 1983, o psicanalista e pedagogo João dos Santos escrevia: “Não reprimam as crianças, ajudem-nas a reprimir-se.” Escrevia ainda Santos: “A criança não necessita de ser reprimida para ficar quieta depois de se mover. O que ela necessita é de espaço de pesquisa e tempo de elaboração. Ela procura conhecer para encontrar referências e adquirir segurança e necessita ter segurança para poder apreender o que se passa à sua volta e arrumar as ideias (…) a criança exige do adulto que a ajude a reprimir-se, para encontrar a segurança necessária ao seu desenvolvimento humano, à sua ânsia de atingir, igualar ou ultrapassar os adultos (…) é só necessário que as ajudem a reprimir-se.”
Palavras sábias e actuais. A sociedade de hoje, todavia, parece esquecê-las. Todos os dias vemos crianças e adolescentes que tomam medicamentos para os mais diversos objectivos: para ficarem menos hiperactivas, mais atentas, mais calmas ou mais concentradas. Diagnósticos psiquiátricos avançam todos os dias, formulados por professores, pais e mesmo técnicos sem grande experiência do mundo infantil: hiperactividade com défice de atenção, autismo, perturbação bipolar, psicose infantil, deficiência intelectual. Muitos pais não percebem o que se passa, porque a decisão de tratar não passa por uma escuta atenta da família. Estes diagnósticos, tantas vezes errados, repercutem-se na vida infantil e no relacionamento com familiares, colegas e amigos.
Muitas crianças ditas hiperactivas vivem em famílias sem regras, onde os adultos não permitiram uma exploração cuidadosa do mundo, reprimiram em excesso os movimentos da criança ou, pelo contrário, foram de uma indulgência e de uma permissividade enormes. Na escola, o 1.º ciclo decorreu com exigência mínima, sem que os professores se preocupassem com a educação moral, o reconhecimento do outro ou o limite à liberdade individual. Fichas de trabalho burocratizadas, fornecidas em fotocópias desmaiadas, são preenchidas à pressa, em casa, depois de os pais terem passado horas nos transportes.
O desporto e a Educação Física, essenciais para o bem-estar físico e psíquico, são menorizados no ambiente escolar. Nas famílias pobres, o desemprego e a falta de dinheiro dão cada vez menos espaço à criatividade infantil e o recurso à educação violenta e coerciva é a regra.
Uma equipa do ISCTE apresentou o primeiro estudo realizado em Portugal sobre Medicamentos e Consumos de Performance na população jovem, tendo concluído que um quarto dos jovens portugueses (18/29 anos) já consumiu fármacos para a concentração, quase a mesma proporção fê-lo para descontrair e acalmar, 71,9% já consumiram um medicamento ou produto natural para melhorar o seu desempenho e, nos que trabalham em call-centers, 18,9% dizem tomar medicamentos para dormir.
Presumo que muitos destes jovens foram crianças “irrequietas”, “hiperactivas”, “depressivas”, em que os pais não foram ajudados na melhor forma de educar e diversos técnicos acharam que era mais fácil medicar do que ouvir com atenção. Os adultos à volta desta gente nova não conseguiram fornecer um ambiente de segurança essencial ao seu desenvolvimento, às vezes na crença falsa de que o crescimento tudo resolveria. O que nunca acontece. Educar é conduzir para o exterior, com a cabeça livre para pensar e um caminho para descobrir.