A terceira morte de Sedas Nunes
De entre as múltiplas questões que este caso suscita existe um problema grave de liberdade de imprensa, no que se refere à delimitação de competências entre os proprietários e os directores das publicações periódicas e dos órgãos de comunicação em geral.
Na verdade, fruto de uma experiência negativa passada, em que se registaram numerosos casos de ingerência das entidades proprietárias no conteúdo das publicações, a Lei de Imprensa não deixou dúvidas nesta matéria. É ao director da publicação que compete "orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação”.
Ora, no caso em apreço, o director do Instituto de Ciências Sociais, ou seja, o representante da entidade proprietária, determinou o conteúdo da Análise Social, ao retirar um texto que dela fazia parte, à margem do director daquela publicação periódica.
Ao fazê-lo, violou uma componente essencial da “garantia de independência”, prevista na Lei de Imprensa e na Constituição da República.
Por outro lado, se este caso passar impune, vai constituir um precedente inaceitável para outras revistas científicas e até para outros meios de comunicação social, deixando cientistas e jornalistas à mercê das ordens e instruções dos administradores.
Por isso, fico espantado com a naturalidade com que alguns jornalistas, que se pronunciaram sobre o caso, aceitam uma violação flagrante de um princípio basilar da liberdade de imprensa, que lhes cumpre defender.
Pelo exposto, esta intervenção do director do ICS configura, à partida, um acto de censura, por falta de competência para determinar o conteúdo da publicação.
Quanto às razões invocadas para o fazer, nem interessa perder tempo com isso. São as razões invocadas pelos censores de todos os tempos. Grosseria, linguagem imprópria, despejada e inconveniente, mau gosto, maus costumes – e vai de cortar e retirar da circulação.
Não imaginava que mais de 40 anos depois de ter escrito um livro a defender a Liberdade de Imprensa, em co-autoria com Alberto Arons de Carvalho, e de ter feito campanha por todas as formas pela abolição da censura durante o final do Estado Novo, ainda tinha de voltar às lides.
Infelizmente constato que aquilo que outrora tínhamos por garantido está novamente em risco. E logo na Análise Social.
O professor Adérito Sedas Nunes não havia de gostar.
Jurista e doutor em História Contemporânea (ISCTE-IUL), professor de Direito da Comunicação Social (Escola Superior de Comunicação Social – IPL), autor de várias obras sobre direito da comunicação social e sobre a liberdade de imprensa