A “segunda morte” de Sedas Nunes
A revista Análise Social (AS), fundada em 1963 por Adérito Sedas Nunes e editada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), produziu insolitamente o escândalo da semana: censura na universidade. O director do ICS, José Luís Cardoso, retirou da circulação o último número da AS. Porquê? Um “ensaio visual” intitulado “A luta voltou ao muro” e composto por uma selecção de graffiti conteria imagens “chocantes, ofensivas e de gosto duvidoso”. Diz tratar-se de uma peça “inapropriada para publicação numa revista académica” e que, por ser considerada “decorativa”, não foi sujeita “a avaliação e arbitragem científica”.
O “director cessante” da revista, João de Pina Cabral, acusa Cardoso de “censura” e de “ataque de lesa-ciência”. Os graffiti em causa, argumenta, “reflectem a frustração popular que se vive em Portugal contra as políticas de austeridade”. A palavra “censura” — “censura pura e dura” — espalha-se pelos blogues e comentários de leitores dos jornais.
O graffito que se reproduz — numa foto do PÚBLICO — é o único imaginativo. Outros são mera grosseria. No que encerra a série, lê-se: “Nos bolsos dele / Estão os teus sacrifícios /Américo Amorim / Ricardo Salgado / Belmiro de Azevedo / Soares dos Santos / Pingo Doce / Sacrifícios / O caralho.” O “ensaio visual” pode ser lido em http://www.esquerda.net/sites/default/files/as_212_ev.pdf.
Os graffiti são um excelente objecto de estudo. O que este caso tem de interessante é colocar uma velha questão: está-se perante um estudo “científico” ou perante um panfleto “cientificamente” justificado? Que é próprio de uma revista académica e que é próprio de uma revista de combate político? Na História ou na Sociologia, há regras do ofício que não devem ser atropeladas. A linha divisória nem sempre é evidente. No caso dos graffiti da AS, a leitura parece-me inequívoca: um panfleto.
Este insólito incidente e os comentários que provocou espelham o estado duma academia em que cresce o “contrabando”, se procuram “temas sexy” e se perde o espírito do rigor — a chave da sua credibilidade. Se são lamentáveis as derivas do jornalismo, mais chocantes são as da academia. Falo como mero leitor das suas publicações.
Declaração de interesses: fui secretário de redacção da AS durante cinco anos, na era de Sedas Nunes. Testemunho o cuidado que ele punha não apenas no rigor dos estudos mas também na separação de águas entre o trabalho científico e os textos de intervenção política a coberto da “ciência”. Morreria pela segunda vez ao folhear esta Análise Social.