A função política da justiça
No Brasil, o juiz de instrução do processo Lava Jato, Sérgio Moro, é comparado pelos media a António Di Prieto, o magistrado do processo de corrupção “Mãos Limpas” que nos anos 90 arrasou o sistema político em Itália. Num artigo datado de 2004, Moro considerou esse processo um modelo a seguir e defendeu que no Brasil “se encontram presentes várias das condições institucionais necessárias à realização de ação judicial semelhante”.
Em Portugal, declarações públicas de dirigentes dos sindicatos das magistraturas do Ministério Público e dos juízes aludindo a “manobras” do governo para condicionar as investigações criminais que afectam os “poderosos”, bem como citações atribuídas a agentes da justiça em defesa de penas “mais pesadas” para políticos, são exemplos de um reposicionamento dos profissionais da justiça face ao campo político.
O enfraquecimento dos partidos políticos tradicionais favoreceu uma autonomização dos magistrados relativamente à política no tratamento da criminalidade económico-financeira, em particular da corrupção. Essa ruptura foi possível graças a contextos históricos em que a legitimidade dos políticos se encontrava fragilizada e contestada, permitindo, como foi o caso em Itália e é hoje no Brasil, a legitimação de uma posição de contrapoder do campo judicial apoiada numa longa tradição onde a razão jurídica é por essência mais nobre do que a razão política sempre ameaçada de fazer prevalecer interesses particulares sobre o interesse geral. Perante a legitimidade electiva dos políticos os magistrados jogam uma autoridade moral e uma competência fundadas numa outra legitimidade: a legitimidade técnica.
Para estas transformações contribuíram também os media. Enquanto porta-vozes do direito dos cidadãos à informação arrogam-se a missão de colmatar a incerteza e a demora da justiça contrapondo-lhe o imediatismo da sanção mediática, ao darem como adquiridas certas explicações para um crime de direito comum ou de um delito político. A notoriedade e o apoio que os media conferem aos magistrados responsáveis por processos envolvendo políticos reforçam o seu papel e a sua função social, criando neles a convicção de que estão a fazer algo de nobre e de importante para a sociedade.
Tal como sucedeu em França e Itália, em Portugal os processos que envolvem figuras políticas proporcionam representações “heróicas” de juízes e magistrados, incensados nos media como “heróis” e incluídos em rankings jornalísticos dos mais “poderosos”.
A aliança implícita entre sectores das magistraturas e das polícias e alguns media, traduzida na fase instrutória dos processos em violações sistemáticas do segredo de justiça, insere-se quase sempre em estratégias de afirmação e reivindicação por parte dos profissionais da justiça para manterem viva a atenção da opinião pública em processos mais complexos para cujo êxito é essencial o apoio dos media.
Porém, os efeitos perversos do protagonismo dos magistrados e dos julgamentos mediáticos de figuras políticas, sobretudo quando orientados para fins alheios à realização da justiça, recaem não apenas sobre a “classe” política mas também sobre a própria magistratura. Ao criarem nos cidadãos percepções de culpabilidade dos arguidos em processos mediáticos, os media alimentam expectativas de condenação dos mesmos. Quando estas não se concretizam, provocam nos cidadãos descrença no papel da justiça: de incensados como heróis, os magistrados passam a suspeitos de subjectividade e de erros; da crítica ao mau funcionamento da justiça, rapidamente se passa à desqualificação da própria instituição.
Em Itália, o paradoxo não podia ser maior: o mediático procurador da operação “Mãos Limpas”, António Di Prieto, abandonou a magistratura e fundou um partido político. E do vazio das lideranças dos partidos históricos nasceu a Forza Itália, liderada por Sílvio Berlusconi.
Estrela Serrano
Investigadora em media e jornalismo