E agora, alguma coisa completamente diferente (2)
Nessas semanas de Agosto de 1964, acabou um período da história da oposição a Salazar, que se iniciara em 1958.
Começa então o mês de Agosto de 1964 e as semanas em que tudo aconteceu. Não há um único conflito, mas um emaranhado de conflitos que se entrelaçam entre si: Delgado contra Piteira, Cabeçadas e Tito de Morais; Pedro Ramos de Almeida e o PCP contra a FAP; a FAP e os seus aliados do Grupo Revolucionário Português de Libertação contra Piteira e o PCP. O MAR a ver as coisas a passar, umas vezes mais “delgadista”, outras menos, mas quase sempre ao lado...
O novo órgão que Delgado criara para dirigir a acção armada era chamado Comando Operacional e era para ele que convergiam todos os seus esforços. Toda a actividade política da FPLN deveria ser-lhe subordinada. A “operação” que Delgado queria realizar era um desembarque no Algarve de uma força organizada no exterior, para o que desejava iniciar de imediato o recrutamento dos homens e o seu treino militar na Argélia. O PCP opôs-se terminantemente à “operação”, embora aceitasse que pudesse haver recrutamento e treino, desde que a FAP não fosse incluída. O delegado do PCP insiste que a FPLN tem de escolher entre o PCP e a FAP, “não é possível que as duas organizações se sentem na mesma mesa”.
Esta posição levou Delgado a começar a associar a atitude de completa hostilidade com a FAP, com a recusa da luta armada. Delgado tem agora uma interpretação sobre o que estava a acontecer: tratava-se de um conflito entre o PCP “clássico”, “pacifista” e “os dissidentes revolucionários do Partido Comunista pacifista”. Delgado começa a falar do “PC clássico”, o de Cunhal, sugerindo que havia outro, “revolucionário”, a FAP, o primeiro recusando a luta armada, o segundo, aceitando-a com entusiasmo. Por seu lado, o PCP achava que o general tinha sido “capturado” pelos “fapistas”. Cunhal, alguns anos depois, interpretava estes acontecimentos dizendo que “não houve aventureiro ou provocador que, de uma forma ou de outra, não lhe tivesse dado ou declarado o seu apoio. (...) Os fapistas de Argel tornaram-se os dilectos impedidos do general”.
Entre 3 e 4 de Agosto, é a ruptura total. Rui Cabeçadas, responsável da emissora Rádio Voz da Liberdade, demite-se no dia 3. Delgado preparara várias emissões, gravando alocuções na rádio, mas estas não são transmitidas. Sem controlar o acesso às autoridades argelinas, Delgado pouco pode. Queixa-se aliás das condições materiais em que tem de trabalhar, numa “salinha e numa saleta”, sem dispor de gabinete.
No dia seguinte, Delgado escreve uma carta a todos os membros da Junta Revolucionária Portuguesa denunciando os “delitos” daqueles que tinham sido dirigentes da FPLN e que continuavam a sê-lo, citando em particular Rui Cabeçadas e Piteira Santos. Piteira é o alvo principal sujeito a uma diatribe total: “petulância”, “vaidade e refinada maldade”, “intrigas”, “acções de tipo psicológico ‘uterino’”, “escumando raiva”. Logo a seguir, Delgado suspende Piteira de todas as actividades, e, farto do “ambiente do papel, do discurso, (...) do parlamentosinho diário,” interrompe as actividades normais, excepcionando apenas o Comando Operacional, e manda a FPLN para férias de Verão. Tudo na base da sua qualidade de “chefe” da oposição, sem consultar nenhum órgão da FPLN.
No dia 5, o conflito torna-se ainda mais “quente”. Rui Cabeçadas ameaça um apoiante de Delgado, Adolfo Ayala, de lhe bater e tem uma violenta altercação com Delgado, que o expulsa da sala do Bureau da FPLN. Cabeçadas sai mas traz a chave da secretária e os carimbos da FPLN. É de imediato acusado de “roubo”. Receando pela sua integridade física esconde-se em casa de Piteira, onde Piteira passa o dia a escrever cartas a relatar a situação aos seus amigos dispersos pela Europa. Preocupados pela sua segurança, vários exilados procuram Cabeçadas por toda a parte nos próximos dias.
Mas Cabeçadas e Piteira tinham razão em defender-se. Ayala, Manuel Vaz e três desertores tinham aparecido em sua casa para o ir buscar, mas ele não lhes tinha aberto a porta. Tentaram forçar a porta, mas desistem, “Tudo indicava que se dispunham a agredir”, escreve-se num relatório do MAR. Só cinco dias depois irá aparecer de novo. Aliás, esses receios existiam de parte a parte. No dia 6, temendo um assalto às instalações que Delgado usava, organizam-se piquetes para defender o “território”: Adolfo Ayala, três desertores, João Pulido Valente e Carlos Lança, armados de varas de marmeleiro, protegem a sede.
No dia seguinte, sexta-feira, sai um novo número da Revolução Portuguesa, que agrupava um conjunto de simpatizantes da FAP e outros influenciados pela revolução cubana, virulentamente hostil a Piteira e que se aproxima de Delgado, alinhando com as suas “decisões”. Embora o que se estava a passar fosse do conhecimento da elite política do exílio português, a circulação da informação pelo resto da comunidade era escassa. E a Revolução Portuguesa volta de novo a incendiar os ânimos, denunciando os factos ocorridos nos últimos dias com Cabeçadas.
Nesse sábado dia 8, Delgado procura o apoio de alguns exilados que desconhece serem do MAR. Quando lhe é dito que alguns dos membros da FPLN pertenciam ao MAR, e que não podem alinhar com qualquer lado antes de consultarem a sua direcção, Delgado explode: “É mais uma complicação, (...) todos umas enguias que fogem às coisas; cobardes porque não têm posições, estão às ordens dum Sr. Pereira qualquer que está lá para Paris." E terminou ameaçando “que nos desmascarava a todos e nos 'enchia de trampa'”.
Embora Delgado não concordasse com a atitude do PCP de querer expulsar os “fapistas” das actividades da FPLN, não queria romper com o partido, visto que, “como aliado leal do PCP”, não se podia opor às condições do PCP. Mas as relações de Delgado com o delegado do PCP estavam também a azedar. Nesse mesmo dia, Delgado tem uma discussão violenta com Pedro Ramos de Almeida “e novamente volta a falar de tiros”. Este, por sua vez, para precisar a posição do PCP, faz uma declaração ao Alger Republicain considerando que “se regozijava de ter a possibilidade de trabalhar lado a lado [com] (...) General Delgado (...) Tito de Morais e (...) Piteira Santos e Rui Cabeçadas”. Afirmava assim a posição do PCP de querer manter unidos Delgado e o grupo à volta de Piteira.
Nos dias seguintes, duas personalidades com um papel-chave nos eventos chegam a Argel, primeiro Manuel Sertório a 13, e depois Álvaro Cunhal a 15 de Agosto. Sertório tinha cimentado uma relação de confiança sólida com Delgado, que o consultava amiúde e tinha na sua vinda a esperança de reequilibrar as relações de poder, visto que Sertório era formalmente da direcção da FPLN. Enganou-se porque Sertório afasta-se cada vez mais do General. Cunhal, por seu lado, espera que as suas relações pessoais com Delgado favoreçam uma solução. Na verdade, nem Cunhal nem Delgado desejavam romper, mas os eventos empurraram-nos para esse caminho.
Cunhal visita quase de imediato Delgado na sua vivenda no Palácio do Povo. Delgado estava com o seu médico, Marcelo Fernandes da FAP, e diz-lhe para ir para o terraço. Porém, Marcelo esconde-se para assistir ao encontro entre os dois:
“Sr. General, dá-me licença que o abrace? – perguntou Álvaro Cunhal.
(...) Está muito calor para abraços...
Mas Álvaro Cunhal tanto insistiu que Humberto Delgado acabou por lhe satisfazer a vontade: 'Ó homem, quer abraçar, abrace. Abrace lá duma vez e pronto!'"
A realização de uma nova Conferência da FPLN foi a principal decisão do encontro. Sertório teve um papel determinante em convencer Delgado a convocar a reunião, mas não foi fácil. Não havia unanimidade nos pormenores. Delgado discorda do local e do timing. Delgado quer fazer a Conferência em Portugal e não de imediato. Cunhal pretendia que fosse feita o mais cedo possível e achava impossível fazer-se a Conferência em Portugal e propunha a Argélia.
Cunhal e Delgado concordaram que a Conferência devia evitar a pessoalização das questões. Mas isso dependia muito da sua composição e este foi o mais complicado problema que tiveram de resolver. Cunhal e Delgado concordaram num conjunto de personalidade “civis” e militares. Era uma composição muito distinta das Conferências anteriores e muito difícil de conseguir a curto prazo, como Delgado suspeitava.
Porém, o problema surgiu com outro nome que Delgado queria incluir: Mário de Carvalho, o seu contacto em Itália que lhe prometia militares, tropas, grupos organizados no interior, mas que estava já a actuar por conta da PIDE. Aqui as divergências com Cunhal foram muito graves. Delgado queria que Mário de Carvalho fosse convidado, Cunhal disse que não. As negociações ficaram num impasse.
Depois, Cunhal cedeu a uma fórmula ambígua de um convite sujeito a confirmação pela Conferência. Na redacção do acordo político que convocava a reunião, Cunhal escreveu: “O signatário, embora faça reserva a essa inclusão, aceita-a entretanto por entender ser de alta importância conseguir a unidade para a convocação da III Conferência.” Delgado, pelo contrário, rejubila. Na sua cópia do acordo, anota à mão: "Disse a Cunhal que, se o dr. Carvalho fosse excluído, eu rompia com o PC. Engoliu... Mas fez reservas.” Um comunicado conjunto assinado por Cunhal, Sertório e Delgado a 20 de Agosto de 1964 convoca a reunião. A crise tinha aparentemente acalmado.
Na verdade, o que fora rompido não tinha remédio. Nessas semanas de Agosto de 1964, acabou um período da história da oposição a Salazar, que se iniciara em 1958, centrada no General Humberto Delgado. Delgado acabou por não ir à Conferência, e está cada vez mais nas mãos da PIDE. Caminha a passos largos para o seu assassinato, poucos meses depois. Os que “sobraram” da crise de Argel vão conhecer ainda muitas vicissitudes, mas desembarcaram todos em Lisboa nos dias seguintes ao 25 de Abril de 1974.