Saúde: "Portugal não está a aproveitar oportunidade para mudar com a crise"
Cada português tem, em média, “pouco mais do que 100 euros por mês para se alimentar”, afirmou bastonária dos nutricionistas em debate sobre impacto da crise na saúde
“A despesa em saúde está a crescer de uma forma exponencial. Ou temos a coragem de perceber que precisamos de reformar o sistema de saúde ou então ele implode. Se não conseguirmos a sustentabilidade do sistema, voltamos aos primórdios e aí cada um safa-se”, avisou o presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de S. João, António Ferreira, no debate que decorreu na Faculdade de Medicina do Porto. “Os portugueses são os que mais gastam em medicamentos, mais do que os suecos, em termos absolutos”, são um povo envelhecido e com grande carga de doença na velhice e com uma baixíssima taxa de natalidade, elencou. Se a isto juntarmos “a taxa de alcoolismo, o sedentarismo, as distorções alimentares”, o futuro afigura-se complicado: "Vamos ter que mudar, não temos alternativa."
“Portugal importou o modelo europeu dos ricos no sistema de saúde e conseguiu atingir metas espantosas, mas tem vivido crises económicas e políticas sucessivas. A estrutura está cheia de defeitos. Pensei que esta era a oportunidade de arrumar a casa, de corrigir vícios, mas não se arrumou casa nenhuma”, lamentou Agostinho Marques, director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Entretanto, apesar dos cortes, ainda não há efeitos “mensuráveis” e os cuidados de saúde são os habituais, mas não há garantias de que a situação continue assim, advertiu.
Para já, o “efeito mais óbvio” da crise é “o medo”, sentencia. “Há muito medo instalado quanto à saúde. E as pessoas têm razão para ter medo. O ideal seria que os cortes afectassem apenas o desperdício, mas a realidade não é assim. Afectam sempre a prestação de serviços”, declarou Agostinho Marques aos jornalistas, antes do debate começar. Apesar de defender que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) “não está em causa como instituição”, antecipou que “não responderá da mesma maneira” no futuro. Para as pessoas “que vivem no limiar”, qualquer aumento de custos, “que até pode nem ser na saúde, mas na alimentação”, “tem impacto na saúde”, disse, citado pela agência Lusa.
“Não podemos tratar a saúde só no Ministério da Saúde”, defendeu, a propósito, a bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento. Tendo por base o estudo recentemente divulgado pela Direcção-Geral da Saúde - no qual três em cada dez inquiridos assumiam ter deixado de consumir um alimentado considerado essencial -, Alexandra Bento sublinhou que cada português dispõe, em média, de “pouco mais do que 100 euros por mês para se alimentar, um valor tremendamente insuficiente”.
Coube a Pedro Graça, director do Programa Nacional de Promoção Alimentação Saudável, evidenciar que as mudanças na alimentação, devido à crise, até podem acabar por ser positivas. O que se sabe, para já, é que as pessoas estão a substituir a carne de vaca por carne de frango e peixes mais caros por outros mais baratos. “Ninguém deixa de comer carne ou peixe, trocam é o mais caro pelo mais barato. O peixe acima de 15 euros deixou de ser vendido. Mas ninguém troca carne por feijão”, observou o especialista, para quem “o grande desafio dos próximos tempos é perceber que as mudanças podem ser feitas de forma positiva”.
“Uma feijoada transmontana tem quase tantos aminoácidos essenciais quanto um bom bife”, exemplificou também Davide Carvalho, da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade. Da crise pode resultar ou não um aumento da obesidade, afirmou, lembrando que, após a última guerra mundial, a fome repercutiu-se num agravamento deste problema, enquanto Cuba enfrentou o bloqueio norte-americano e a falta de alimentos e de medicamentos de uma forma que conduziu a resultados diferentes: "Em Cuba, os profissionais de saúde faziam sessões de actividade física e davam consultas alimentares. O que aconteceu? A prevalência da obesidade diminuiu".
Para evitar impacto dramático na saúde mental é preciso criar emprego
A resposta para os impactos que se prevêem “dramáticos” da crise na saúde mental, como o do eventual aumento do suicídio, está “na criação de emprego e no reforço do apoio social, que não é o que se está a verificar [em Portugal]”, defendeu o director do Programa Nacional de Saúde Mental, Álvaro Carvalho, em declarações aos jornalistas, antes do debate.
“Se as pessoas estão desempregadas, não são os psiquiatras que vão resolver os problemas”, frisou, explicando que os efeitos da crise na saúde mental são um “problema transversal”, uma vez que não se resolvem “sem respostas da segurança social, do mercado social de emprego ou de cursos de formação que respondam a áreas em que há défice a nível de mercado para reduzir o desemprego”.
No imediato, na área da saúde mental não se perspectiva a dificuldade de acesso à prestação de cuidados profissionais, porque os doentes não pagam taxas moderadoras, mas “poderá haver, e parece que há, dificuldades de acesso aos transportes [para as consultas] e de acesso aos medicamentos adequados”, observou, citado pela Lusa. Quanto aos suicídios, estes são uma das “repercussões” registadas “internacionalmente” em cenário de crise económica, pelo que “quando se fala em crise ao nível da saúde mental inevitavelmente” tem de se “falar no risco de suicídio”. Por enquanto, porém, as estatísticas não são fiáveis em Portugal.
Apesar de tudo isto, Álvaro Carvalho considerou, durante o debate, que, aparentemente, os portugueses estão a demonstrar "maior capacidade de resiliência do que os gregos".