O guru David Lynch aterrou entre nós e o Estoril ficou um lugar estranho
Num descampado suburbano, como num filme de Lynch
a David Lynch está em frente a 600 pessoas e ele sabe o que elas estão a pensar: "This Lynch guy is nuts!" ("Este gajo é maluco!")A brincar, a brincar, até é verdade e isso não tem de ser mau, pelo contrário: quem vê Lynch ao perto está à espera que ele seja assim, porque é a confirmação de um imaginário que o cineasta tem vindo a construir nos seus filmes.
O mínimo que se pode dizer é que quando Lynch aterra num lugar, tudo fica mais estranho. Foi assim ontem, no Estoril, final em grande (e com casa cheia) para o European Film Festival: Lynch entrou no Centro de Congressos de cigarro na boca, parou para acabar de fumar (e o mundo que o seguia parou com ele), pregou a meditação transcendental como um guru, foi a um descampado plantar uma bandeira e depois voou para Paris.
Ele está a contar: Lynch esteve em 15 países e 26 cidades nos últimos dois meses - veio de Dusseldorf, na Alemanha, numa companhia low-cost, a excentricidade dele é outra. Como é que um homem sempre lacónico e esquivo sobre a sua filmografia e um orador relutante acaba a viajar pelo mundo para falar, entusiasticamente, de meditação transcendental? "Vá-se lá saber!", defendeu-se na conferência de imprensa, pouco antes do seu encontro com o público. E explicou: a meditação transcendental, que pratica diariamente há quase 35 anos, é "uma experiência de pura beatitude", na qual deu consigo a pensar: "Oh, isto é tão incrível. Vamos ter paz mais cedo do que julgamos." Mas depois notou que ninguém acreditava e achou que tinha de fazer qualquer coisa - tinha de ir por aí espalhar a palavra, capitalizando a sua fama como cineasta.
É esse o Lynch que esteve ontem no Estoril, e que trouxe consigo uma pequena equipa, da Fundação David Lynch, que está a registar um documentário sobre as suas conferências de meditação transcendental. E não parece que o público que encheu o auditório para o ouvir e fazer perguntas - Qual é a diferença entre os sonhos que tem quando dorme e os sonhos acordados?... Os seus filmes são dirigidos ao nosso inconsciente?... Como é que lida com a incompreensão dos espectadores e relação aos seus filmes?... - tenha ficado desiludido.
Podemos meditar agora?Rosto de cera, cabelo grisalho meticulosamente esculpido, gravata amarela sob uma gabardina preta à Dale Cooper (Twin Peaks), Lynch receitou a meditação transcendental como se descrevesse os efeitos de alucinogénios - prometendo "expansão da mente", "plenitude", uma "porta aberta"para a "iluminação" - e garantiu que é a solução para muitos males do mundo, incluindo a educação. "Hoje em dia, e sobretudo nos Estados Unidos, as escolas são buracos infernais. Em vez de ir para a escola, é como se os miúdos fossem para o inferno todas as manhãs, depois do pequeno-almoço." A meditação transcendental - que é "uma técnica mental, não uma religião", esclareceu - é o antídoto, diz, e em 2005 criou a Fundação David Lynch, para financiar a prática da meditação transcendental nas escolas.
E quando as perguntas começam a ser insistentemente sobre cinema, Lynch faz questão de lembrar por que é que estava ali. "Já ouvi pessoas dizer que o cinema lhes mudou a vida, mas se querem mesmo ajudar o mundo e o vosso mundo, a meditação transcendental é a porta que abre para isso."
Ele sabia o que as pessoas deviam estar a pensar: "This Lynch guy is nuts!" Pensem o que quiserem, disse, mas "experimentem e vejam o que acontece". Foi então que alguém perguntou, como se fosse um teste: "Podemos fazê-lo agora?"
David Lynch está num descampado num subúrbio junto ao Estoril chamado Atibá, feno de Portugal pelo joelho, segurando uma bandeira - um sol psicadélico, vermelho sobre amarelo. Nem nos nossos sonhos mais lynchianos? Aconteceu mesmo: entre o Centro de Congressos e o aeroporto, Lynch foi ali plantar "a bandeira da invencível universidade de Portugal". Uma trintena de pessoas empunha margaridas amarelas, o trio de músicos Corvos, vestidos com fatiota mafiosa, interpreta o hino nacional. É a semente para que um dia se erga ali uma escola que pratique meditação transcendental e voo ióguico, explica Eduardo Espírito Santo, 53 anos, fato crepe e ténis brancos, representante do País Global da Paz Mundial em Portugal, organização que apregoa os ensinamentos do guru Maharishi Mahesh Yogi. Trouxe o DVD de Uma História Simples lá de casa, para pedir um autógrafo.
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