"Não estamos à procura de superpais mas de pais muito bons"
São 14 candidatos. Durante horas debatem casos reais, recebem conselhos, são desafiados: "Como é que lidariam com uma criança que vos agredisse?"
Andam na casa dos 30, 40 anos. Alguns um pouco mais. Há educadores de infância, uma enfermeira, uma administrativa, uma técnica de turismo, uma técnica de farmácia, um professor... Alguns têm filhos biológicos. Alguns queriam ter, mas não conseguem. Alguns vivem só com o marido. Outros só com o gato. Sentam-se como se estivessem numa sala de aula, em semicírculo, numas cadeiras com tampo para escrever. É a segunda sessão de formação para a adopção a que assistem. Já depois das apresentações, Ângelo Félix, 31 anos, é desafiado a ler um texto em voz alta, o relato de um caso real. Fala de Carmen, uma menina de cinco anos e meio, "muito bonita e inteligente", que era abusada sexualmente pelo pai.
Carmen é uma criança desconfiada. "Demonstra muitos medos." E durante a noite, na instituição onde foi entretanto acolhida, "tem pesadelos e faz xixi na cama". Ângelo continua a ler em voz alta: "Carmen manifesta alguns comportamentos de índole sexual, sendo disso exemplo a necessidade de se masturbar como forma de obter algum prazer antes de adormecer".
A "aula", que durará mais de quatro horas, numa pequena sala de um edifício do Instituto de Segurança Social (ISS), em Lisboa, é quase sempre descontraída. Mas há momentos, como este, em que alguém entre os 14 aspirantes a pai ou mãe respira fundo. "Isto é monstruoso."
No fim do texto, uma das perguntas colocadas aos participantes é esta: "Que características, capacidades e recursos vos parece que devem ter os pais que adoptarem esta criança?" Respostas dos candidatos: "Tolerância", "uma boa base familiar", "apoio psicológico..." Há quem hesite. "O mais difícil ia ser lidar com estas manifestações sexuais..."
É de exercícios deste tipo que se faz a chamada "sessão B" do Plano de Formação para a Adopção, que arrancou em Dezembro de 2009. Este plano resultou de um protocolo de colaboração entre o ISS e a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto, e tem, no essencial, um objectivo, resumindo as palavras de um dos formadores, o psicólogo Luís Santos: desfazer ideias feitas que os candidatos possam ter sobre o que é a adopção e adequar as suas expectativas à realidade. Para que cada um esteja neste processo de forma realista. E saiba do que é capaz.
A "sessão A" destina-se a quem ainda não formalizou a sua candidatura. Foi frequentada em 2010 por 1629 pessoas. A "B" é para quem já está em processo de avaliação - e teve, no ano passado, 734 formandos. A "C" é ministrada na "fase de espera" - cinco sessões antes dos candidatos receberem uma criança. E a "D", na fase de pré-adopção (quando as crianças já estão integradas na família).
Ana Nascimento, assistente social, e Luís Santos integram a equipa de adopção do ISS e são os formadores de serviço nesta sessão "B" onde se debate a história de Carmen. Acabarão por fazer a pergunta: "Seria capaz de lidar com isto?" Há quem admita que não consegue responder. E Ana Nascimento será crua: não faltam casos de crianças abusadas. "E vocês podem ter de lidar com isto."
Ao longo da "aula" haverá outras histórias reais, testemunhos de pais que já adoptaram, e mais perguntas difíceis: "Como é que lidariam com uma criança capaz de dizer impropérios, que vos agredisse?"; "Há crianças que dizem: "Eu sei que vão abandonar-me. Quando é que vai ser? É quando eu partir o quarto todo? Quando agredir o irmão mais novo? Quando agredir a mãe?""
"Parece que só estamos aqui a mostrar o lado negro das coisas", admitirá Ana Nascimento. E, de facto, às vezes parece isso mesmo. Mas a generalidade dos candidatos não parece vacilar com informações como estas. "É bom ter a noção de que uma vinculação absolutamente segura pode levar dois anos a construir-se." E, até lá, podem ter que passar "as tormentas".
Há, no máximo, um suspiro, um ou outro desabafo: "Isto promete ser animado." E sorrisos reconfortados quando Ana e Luís dizem que quase sempre estas histórias têm final feliz. "Não estamos à procura de superpais. Mas estamos à procura de pais muito bons", continua. Porque as crianças que aguardam por uma adopção não podem "sofrer mais", como uma devolução, por exemplo. "Mas há quem devolva?", indigna-se uma candidata, enfermeira.
Ângelo Felix, educador social, é um dos que não parecem vacilar. "Acho que isto está bem feito", diz. "A primeira sessão de formação serve um bocado para despistar os candidatos." É puxado, admite, mas necessário. E como ele pensarão 97 por cento dos candidatos que, segundo o ISS, deram nota possitiva ou muito positiva às sessões de formação.
Ângelo e Leonor, uma educadora de infância de 39 anos, têm uma filha biológica - Matilde, de quatro anos. Há dois que lhe andam a dizer que ela vai ter um irmão, que irão buscar "a uma casa onde há meninos sem família". No início do ano, enviaram "os papéis" por correio, para Lisboa, para pôr fim ao inútil périplo entre o centro distrital de Segurança Social da Lourinhã e o de Torres Vedras, onde, dizem, não havia quem lhes explicasse o que era preciso fazer para adoptar.
Chegaram aqui. Dentro de uma semana ou duas as suas candidaturas serão analisadas. Para casa dos 14 candidatos seguirá depois uma carta. Se o veredicto for negativo, são chamados, "porque uma recusa não se comunica por escrito", diz Luís. Já se houver "luz verde" para a adopção, seguir-se-á a espera: três, quatro anos, eventualmente mais, se quiserem adoptar um bebé saudável; alguns meses apenas, se aceitarem um miúdo de dez anos. Todos estão cientes que podem ter de esperar muito. E há quem não esconda a indignação, quando perto de dez mil crianças vivem em instituições. "São tempos de espera muito pouco sociais", desabafa Pedro, aspirante a pai.