Já ouviu falar em síndrome de Cornélia de Lange? A vida de Martim gira à volta dele

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Martim, seis anos: a confirmação da doença chegou há um ano ENRIC VIVES-RUBIO

As doenças que se chamam raras afectam quase um milhão de portugueses. É o caso de Martim, cuaj doença quase o impede de falar. A mãe só quer que ele seja um menino "igual aos outros"

Martim entra na sala a correr, sempre a sorrir. Não quer tirar a chupeta, mas rapidamente a mãe o convence a trocá-la por um chocolate. Fica muito atento a olhar para as sombras que se formam no chão, a tentar segui-las e a formar recortes novos. O Martim foi diagnosticado com síndrome de Cornélia de Lange e a confirmação genética da doença chegou há cerca de um ano. É uma das chamadas doenças raras que afectam quase um milhão de portugueses e caracteriza-se pelo atraso no crescimento e desenvolvimento psicomotor, cabeça pequena, baixa estatura e características faciais específicas, como a união das sobrancelhas ou o lábio superior fino. Pode provocar anomalias nos membros superiores, alterações gástricas, como refluxo, e problemas cardíacos.

"Ouvi pela primeira vez a expressão Cornélia de Lange quando o Martim tinha nove meses", conta a mãe, que na altura vivia em Inglaterra, onde o bebé nasceu. Prematuro, nasceu de uma cesariana de emergência e seguiu para os cuidados intensivos. "Na altura ninguém me falou de síndrome nenhum, disseram-me que era um bebé pequeno", diz Ana Eça de Queiroz, 34 anos. "Não sei explicar isto, mas mal olhei para o meu filho senti que ele tinha alguma coisa." Apesar de o "instinto de mãe" lhe dizer que alguma coisa não estava bem, não sabia o que era e os médicos não confirmavam os seus receios: "Dentro de mim guardava a esperança que fosse só a minha imaginação e os meus medos, que não fosse verdade".

Mudar mentalidades

O Martim está longe de ser caso único. Estima-se que em Portugal haja entre 600 a 800 mil doentes raros, portadores de uma doença com prevalência inferior a cinco em dez mil pessoas. Hoje serão divulgados os primeiros números - ainda que preliminares - do Registo Nacional das Doenças Raras, que começou a ser feito há dois anos e pretende traçar o retrato nacional destas patologias. A presidente da associação Raríssimas, Paula Brito e Costa, refere que "é muito importante saber qual a realidade" das doenças raras e fazer com que a sociedade pense no assunto.

Este é um dos maiores desejos de Ana Eça de Queiroz: "trabalhar as mentalidades". Explica que é preciso "fazer trabalho de campo", para que um dia o seu filho "possa sair, arranjar um emprego, ter amigos". Como "os pais sozinhos não conseguem mudar nada", Ana juntou-se à Pais em Rede, uma associação que pretende ver a mudança na sociedade. Este movimento junta famílias de pessoas com deficiência e, através das Oficinas de Pais, ajuda os "pais especiais" a desenvolver competências para ajudar os filhos e promover a sua inclusão.

A doença rara de Martim só foi descoberta porque um dos sintomas - refluxo gastroesofágico - se manifestou. Depois de "muitos meses de sofrimento" em que o bebé vomitava todo o leite que bebia, os médicos fizeram o diagnóstico clínico. Ana conta que foi "um choque muito grande" mas, agora com seis anos, a criança tem poucas manifestações físicas da doença. Quanto à saúde mental, "tem um atraso no desenvolvimento global, problemas graves de comunicação e da fala". Para a família, o caminho tem sido difícil, mas não impossível. "Tem terapias [ocupacional e da fala] desde os dois anos porque, mesmo sem diagnóstico, eu sabia que o meu filho precisava de ajuda", diz a mãe.

Emigrada há dez anos e assistente social de profissão, Ana conta que quando voltou a Portugal, em 2009, se sentiu "no deserto". "É o meu país, é a minha língua, mas continuava no meio do deserto e sem saber para onde me virar." Depois de bater "a todas as capelinhas" e de receber informações contraditórias - naquilo que diz ser a "confusão total" -, foi ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Era lá que o filho tinha a consulta de desenvolvimento e julgou que seria acompanhado no hospital: "É um serviço público e o meu filho precisava de muito apoio".

Não foi isso que aconteceu, tendo a médica dito que "no hospital é só para as crianças que têm hipótese de recuperar". "Revoltada" e "triste", afirma que foi o contacto com outros pais que já tinham passado pelo mesmo que a ajudou a lutar e a "canalizar" a "muita força" que tinha. Hoje, o Martim está "bem acompanhado" e a segurança social comparticipa as consultas de terapia da fala de que necessita. Anda na escola - no próximo ano entra na primária - e "faz tudo igual aos outros meninos".

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