Investigação do PÚBLICO permite ao Estado cobrar mais de 11 milhões de euros
Inquérito-crime provocado por uma notícia de há 10 anos obrigou um ex-vereador da Câmara de Lisboa a pagar mais 60.500 euros de sisa. O inquérito foi alargado a todos os compradores de apartamentos na urbanização e já rendeu ao Estado 3,4 milhões de euros. O encaixe de mais 7,7 milhões foi objecto de recurso e depende agora de uma decisão judicial
Um antigo vereador da Câmara de Lisboa e quase centena e meia dos seus vizinhos tiveram de pagar cerca de 3,4 milhões de euros às Finanças, por fuga ao imposto municipal de sisa, devido pela compra de casas, na sequência de uma investigação judicial aberta há dez anos a partir de uma notícia do PÚBLICO. Em consequência da mesma investigação, a empresa vendedora dos apartamentos, situados numa urbanização da zona de Belém, foi notificada para pagar 7,7 milhões de euros de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), devidos pela subfacturação daquelas transacções.
António Machado Rodrigues, um engenheiro especialista em transportes, foi vereador na Câmara de Lisboa, eleito pelo PS, nos mandatos de Jorge Sampaio e João Soares, entre 1989 e o final de 2001. Em Novembro desse ano, o PÚBLICO noticiou que o então autarca adquirira, meses antes, dois apartamentos no condomínio Infante de Sagres, acabado de construir a duzentos metros do Centro Cultural de Belém, e que declarara na escritura um preço largamente inferior ao seu valor de mercado. Pelas duas fracções, disse ter pago o equivalente a 163.000 euros, custando-lhe a sisa perto de 2900 euros. O preço pedido nessa altura pela mediadora que comercializava o empreendimento ultrapassava, porém, os 500.000 euros para dois fogos equivalentes.
Nunca fugiu à sisa, garantiu
Em resposta ao PÚBLICO e também numa carta posteriormente publicada ao abrigo da Lei do Direito de Resposta, Machado Rodrigues garantiu que "não violou quaisquer disposições do imposto de sisa ou quaisquer outras, antes cumpriu escrupulosamente com os seus deveres fiscais, dentro de toda a legalidade, como aliás sempre cumpriu e assim continuará". Na sua versão, a compra dos apartamentos fazia parte de um negócio através do qual entregaria mais tarde o andar em que vivia, no Restelo, por permuta com uma loja do mesmo condomínio.A empresa a quem Machado Rodrigues e mais centena e meia de pessoas compraram os 159 fogos do empreendimento era a Polipraia, controlada por Carlos Saraiva, um conhecido empresário do sector hoteleiro e da construção civil que, com dois sócios minoritários, adquirira as quotas da sociedade, em 1999, ao construtor Bernardino Gomes e mais três sócios, entre os quais o então ministro da Justiça Vera Jardim.
No dia seguinte ao da publicação da notícia, o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa remeteu uma cópia do PÚBLICO para a Direcção de Finanças de Lisboa, delegando-lhe a competência de investigar os factos divulgados. De acordo com os autos do processo, que já ultrapassaram as 11.400 folhas e que o PÚBLICO consultou há dias, a investigação durou cinco anos e foi alargada a todos os compradores de fracções da urbanização, bem como à Polipraia e aos seus sócios.
No decurso do inquérito, Machado Rodrigues, um filho seu, em nome de quem foi registado um terceiro apartamento, e os donos de mais 142 fracções - cerca de cem dos quais foram constituídos arguidos - acabaram por reconhecer ter pago à volta de três vezes mais do que haviam declarado. E, entre 2004 e 2006, todos eles pagaram, voluntariamente, o adicional da sisa correspondente à diferença entre aqueles valores, bem como multas e juros compensatórios, num total que ronda os três milhões e quatrocentos mil euros.
A Polipraia, por seu lado, foi alvo de duas acções de fiscalização tributária que determinaram a sua notificação, em 2006, para pagar um adicional de IRC no valor de 7,7 milhões de euros. A exigência deste imposto foi impugnada judicialmente pela empresa, estando ainda o processo à espera de decisão no Tribunal Central Administrativo Sul.
Já no que respeita a Carlos Saraiva - que, em 2007, ficou conhecido por emprestar um jacto privado a Luís Filipe Menezes, durante a campanha para a liderança do PSD - teve de corrigir a sua declaração de IRS respeitante a 2001, na qual tinha inscrito um rendimento de poucos milhares de euros, acrescentando-lhe 291.000 euros e pagando o imposto correspondente.
Pagou mais 60.500 euros
No caso de Machado Rodrigues, que, antes de ser autarca, foi deputado, secretário de Estado dos Transportes, administrador dos CTT e sócio de várias empresas, o processo de regularização da situação foi mais complicado. Quando foi ouvido pela primeira vez como arguido, em 2002, confirmou que tinha pago apenas os 32.600 contos (163.000 euros) declarados na escritura, mantendo a versão de que a compra das duas fracções fazia parte de um negócio ainda por concretizar (combinado quando Bernardino Gomes e Vera Jardim eram donos da empresa) e que envolvia a permuta do seu andar do Restelo e uma loja que lhe seria entregue pela Polipraia. Nessa altura, declarou que não teve "a intenção de prejudicar a Fazenda" e, em abono da sua imagem de bom contribuinte, acrescentou que "nunca recorreu à prerrogativa legal que determinaria o benefício fiscal decorrente da sua incapacidade física".Mais tarde, em Fevereiro de 2005, quando a investigação já tinha apurado os dados que o incriminavam, escreveu uma carta às Finanças dizendo que, afinal, "os valores de aquisição" das fracções somavam 72 mil contos (360 mil euros) e que a diferença entre este total e os 32.600 contos (163.000 euros) declarados na escritura seria saldada com a entrega do seu andar do Restelo, não fazendo qualquer referência à loja.
No entanto, acrescentava a carta, a permuta prevista acabou por não se concretizar, "pelo que teve lugar agora o pagamento do valor restante" e o pagamento dos adicionais de sisa, multas e juros correspondentes, feito a seu pedido, dias antes, no valor total de 37.980 euros.
Um ano depois, em 2006, interrogado pelas Finanças sobre se o valor pago foi mesmo os 72 mil euros referidos na carta, Machado Rodrigues respondeu que "o valor real se aproxima dos 99 mil contos" (495 mil euros) e que iria regularizar a situação, pagando os impostos devidos.
Ao todo, pagou nestas duas correcções das declarações iniciais, e por força da investigação em curso, mais 60.519 euros de sisa, juros compensatórios e coimas. O filho, que na altura do negócio tinha 26 anos, pagou também mais 21.428 euros.
O processo instaurado em 2001 pelo DIAP está suspenso há vários anos, aguardando a conclusão dos processos de impugnação interpostos pela Polipraia e por dois dos compradores contra as decisões das Finanças. Só depois é que será decidida a proposta das Finanças que aponta para o arquivamento dos autos, no que respeita a Machado Rodrigues e aos outros compradores que entretanto regularizaram a sua situação fiscal com o pagamento de quase 3,4 milhões de euros.