Ao fim de 500 anos, ficámos a saber o segredo da fermentação da "loirinha"
Equipa liderada por cientista português revelou que o aparecimento da cerveja clara e leve, na Europa Central, teve o contributo de uma levedura da Patagónia
Durante cinco séculos, manteve-se inabalável o segredo da fermentação das cervejas de tipo lager, geralmente claras. Tudo o que se sabia até agora era que, nos mosteiros e caves da Baviera, na actual Alemanha, onde os mestres cervejeiros guardavam as bebidas, uma nova levedura se tinha fundido por acaso com a espécie usada há milhares de anos na produção de cerveja e daí resultou uma cerveja mais clara e leve. Que levedura era essa foi agora revelado por cientistas portugueses, argentinos e norte-americanos, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
Ao fim de seis anos de investigação, a equipa descobriu que o antepassado selvagem da levedura da cerveja lager vive nas florestas da Patagónia. Portanto, no século XV, quando os europeus começaram a transportar pessoas e mercadorias de um lado para o outro do Atlântico, uma espécie de levedura da América do Sul viajou milhares de quilómetros, quem sabe se num pedaço de madeira ou no estômago de uma mosca-da-fruta, e acabou por ir parar às caves e mosteiros da Europa Central. Ao fundir-se com a levedura até aí usada, numa feliz coincidência que muitos agradecem, deu origem a um híbrido, que permitiu a fermentação da cerveja a temperaturas baixas.
"Os cientistas sabem, desde há muito, que a levedura cervejeira é um híbrido que resultou da fusão de duas espécies de levedura. No entanto, apenas uma delas era conhecida - a Saccharomyces cerevisiae, que há milhares de anos produz o vinho, leveda a massa de pão e fermenta a cerveja ale", explicou o microbiólogo José Paulo Sampaio, do Centro de Recursos Microbiológicos da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, citado pela agência Lusa. "A segunda espécie, responsável por um conjunto de características que permitem a fermentação a baixas temperaturas, permaneceu durante décadas um enigma, porque aparentava ser claramente distinta das mais de mil espécies de leveduras conhecidas", acrescentou o cientista, que liderou a equipa.
"A fusão destas duas leveduras, que evolutivamente estão tão separadas como o homem e a galinha, terá ocorrido nos fermentadores de cerveja lager, num processo de selecção artificial promovido pelos mestres cervejeiros", referiu José Paulo Sampaio.
"Ao longo da história fomos domesticando plantas, como o trigo e o milho, e animais, como o boi e o cavalo. O mesmo aconteceu com os micróbios: neste caso, se entendermos como decorreu o processo de domesticação, e avaliando as diferenças entre o micróbio selvagem e o micróbio domesticado, podemos perceber melhor a natureza das alterações associadas à domesticação e usar esse conhecimento para melhorar ou diversificar os alimentos produzidos por microrganismos", acrescentou o investigador.
A rota da levedura
"A lager surgiu na Baviera no século XV, no final do século XIX já era muito apreciada e tornou-se, desde então, na técnica mais popular de produção de bebidas alcoólicas, com mais de 250 mil milhões de dólares [173 mil milhões de euros] de vendas globais em 2008", lê-se no artigo que, entre os portugueses, é ainda assinado por Elisabete Valério e Carla Gonçalves, também do Centro de Recursos Microbiológicos.A nova espécie de levedura, que a equipa baptizou com o nome científico Saccharomyces eubayanus, ainda não foi encontrada noutra região além da Patagónia. "Há décadas que se anda à procura desta coisa. E agora encontrámo-la", realçou, num comunicado, um dos autores norte-americanos, o geneticista Chris Todd Hittinger, da Universidade Wisconsin-Madison. "É claramente a espécie perdida."
Agora que se conhece a verdadeira identidade genética por detrás da cerveja saboreada por tantos, por cá com a alcunha "loirinha", os cientistas querem perceber a rota feita por esta levedura há 500 anos. Vai uma cerveja fresquinha?