E se Passos tiver tido sorte?
Tivesse Passos sido reeleito, e a sua vida como primeiro-ministro estaria acabada em 2019. Neste momento, se aproveitar o período de pousio para regressar viçoso, tem boas hipóteses de estar em São Bento em 2025.
A entrevista de Pedro Passos Coelho ao PÚBLICO de sábado é muito surpreendente. Teresa de Sousa já escreveu um óptimo texto sobre ela e sobre os desafios da nova direita, mas eu gostaria de sublinhar um aspecto que creio não ter sido suficientemente realçado: ali se encontra a primeira grande legitimação, por parte da direita, de António Costa como primeiro-ministro.
Note-se que não se trata apenas de uma legitimação conformada, por o PSD não poder perpetuar o resmungo como programa, mas de uma verdadeira legitimação política. Para Passos, António Costa não se aliou à esquerda apenas por desejo de assaltar o poder mas por genuína afinidade ideológica. Diz ele: “O PS hoje está, de facto, muito próximo do PCP e do BE porque pensa que o papel do Estado, o papel da economia, o papel da sociedade civil devem ter uma configuração diferente.” Passos fala mesmo numa “mutação do PS”, como se se tratasse de uma alteração genética que o afasta da sua matriz tradicional – precisamente aquilo que ele foi acusado de fazer no PSD.
Isto é muito curioso, por duas razões. Em primeiro lugar, porque valida as manobras de Costa: se PS e PSD estão hoje afastados por duas visões radicalmente diferentes da realidade, então é aceitável que Costa tudo tenha feito para impor a sua. Em segundo lugar, porque esta crítica em espelho, este jogo do empurra, em que o PS tenta deslocar o PSD para uma direita onde nunca esteve e o PSD tenta confundir o PS com uma esquerda que nunca antes frequentou, tem o condão de realizar na prática aquilo que era somente do domínio da profecia.
Há quatro anos que andamos a falar da deriva radical do PSD, uma acusação ridícula de neoliberalismo fantasmagórico que, ainda assim, fez o seu caminho e se conseguiu impor entre uma larga fatia do eleitorado. Agora, chegou a altura de a direita responder na mesma moeda, encostando o PS a uma esquerda poeirenta e conservadora, que foge de reformas como o diabo da cruz, e que quer continuar a sustentar um Estado gargantuesco com dinheiro que não existe.
A narrativa do PSD para a legislatura é clara: apresentar o PS como o grande campeão do corporativismo e defensor não dos mais necessitados mas dos mais instalados, sejam eles os maquinistas do Metro que são subsidiados por fecharem as portas das carruagens, sejam os CEO das empresas que vivem dos negócios com o Estado, e para quem sempre foi mais fácil comprar uma lei ou um político no mercado local do que enfrentar a concorrência no mercado internacional.
Se a entrevista mostra um Passos surpreendentemente pacificado, não é apenas por ele ser pouco dado a paixões da alma. É porque percebeu que a narrativa de Costa favorece a sua própria narrativa. E que se ele conseguir aguentar-se na liderança do PSD, tem à sua frente mais uma década na alta roda da política portuguesa, como porta-voz dos que querem menos Estado e melhor Estado. Não porque Passos tenha realmente posto esse discurso em prática, mas porque neste estranho país aconteceu esta coisa extraordinária: a esquerda deu como cumpridas as promessas que ele incumpriu e retrata-o como o liberal que prometeu ser mas não foi. Tivesse Passos sido reeleito, e a sua vida como primeiro-ministro estaria acabada em 2019. Neste momento, se aproveitar o período de pousio para regressar viçoso, tem boas hipóteses de estar em São Bento em 2025. Não acredito que António Costa tenha feito um favor ao país. Mas é bem possível que tenha feito um favor a Passos Coelho.