Inumanidade diplomática?
Fechar os olhos aos abusos da imunidade é que nos fará arriscar a perdê-la — e às vantagens que ela nos traz.
Na sequência do “caso de Ponte de Sor” — as agressões a um jovem por dois filhos de um embaixador do Iraque — tem aparecido aqui e ali a ideia de que os abusos na imunidade diplomática são inevitáveis e que teremos de os aceitar se não quisermos pôr em risco o sistema diplomático do pós-guerra. O argumento não me convence, e não só porque é demasiado parecido com os argumentos que no passado justificaram abusos da imunidade parlamentar ou da imunidade eclesiástica. Fechar os olhos aos abusos da imunidade é que nos fará arriscar a perdê-la — e às vantagens que ela nos traz.
É porque defendo uma ordem internacional civilizada que não posso defender a arbitrariedade de uma imunidade diplomática que só compete ao país de origem levantar. Essa arbitrariedade gera imediatamente um choque entre posições irredutíveis que levará também a sociedade do país de receção a "defender os seus” e o poder judicial a decidir contra a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas.
A solução — para quem seja internacionalista — pode passar pela criação de uma instância arbitral que não esteja nas mãos de nenhum dos estados implicados numa contenda sobre a imunidade diplomática. Ou pela criação de uma secção do Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, dedicada a estes casos. Ou pela atribuição de poderes a uma comissão da Organização das Nações Unidas cujas determinações os estados implicados se comprometessem a seguir.
Pode dizer-se que seria difícil rever a Convenção de Viena e fazer ratificar essa revisão por quase 200 estados-nação. Mas a ratificação poderá ocorrer ao longo do tempo e, até lá, um estado como Portugal tornar bem clara qual é a interpretação (necessariamente restritiva) que faz da imunidade diplomática a estados que não tenham aceitado um tal acordo de arbitragem. Começando por alertar para o facto de que o Ministério Público português se reservará o direito de não considerar a imunidade diplomática para determinados crimes (contra a vida e a integridade física de terceiros, por exemplo).
Não acredito que muitos estados deixassem de ter representação diplomática num país que fosse mais ativo a combater os abusos da imunidade. No máximo, alguns diplomatas poderiam evitar trazer os seus familiares mais problemáticos ou passariam a alertá-los para que não estariam fora da alçada da lei. O que, bem vistas as coisas, seria pelo melhor.
A imunidade diplomática faz sentido. Mas a visão tradicional dela é demasiado tributária da ideia de que os direitos dos estados vêm antes dos direitos das pessoas (porque os estados são donos das pessoas e não vice-versa). E essa ideia é basicamente incompatível com outra versão do direito internacional baseada na primazia dos direitos humanos e da dignidade individual. Um cidadão foi espancado e quase morreu. Deixar esse crime impune não faria nada pelo reforço das relações entre estados e só ajudaria a cristalizar a ideia de uma certa frieza e inumanidade diplomática.
Portugal fez bem em pedir ao Iraque o levantamento da imunidade diplomática dos seus dois cidadãos, mas deve estar preparado para levar o seu empenho mais longe — dentro e fora de portas — caso esse pedido não tenha resposta positiva.
Historiador, fundador do Livre