Proença, Salgado e o contraditório
Se nós só pudéssemos emitir juízos de valor após o Supremo Tribunal se pronunciar sobre a culpabilidade de Salgado, então isto não seria uma democracia.
Eu só estive uma vez na mesma sala que Proença de Carvalho. Foi em 2010 e ele estava a tentar levar-me a julgamento por causa de um artigo que escrevi sobre José Sócrates, em nome dos mesmos princípios da democracia civilizada que agora invoca. Salgado, Sócrates, a elite angolana – não se pode dizer que Proença facilite a sua própria vida na defesa dos melhores princípios democráticos. Mas empenho não lhe faltará, até porque, segundo o próprio esclarece, “nós não escolhemos os clientes, são os clientes que nos escolhem a nós”.
E tendo Ricardo Salgado escolhido Proença de Carvalho, compreende-se que este utilize o espaço dos jornais para ensaiar a defesa do seu cliente, optando por uma estratégia que já tem barbas: garantir que não se sabe tudo, pedir paciência, afirmar que “é preciso ouvir as várias narrativas de todos os protagonistas” (notem como o conceito de “narrativas” tem uma certa ressonância socrática), e após muito aguardarmos, “com tempo e serenidade e depois de haver um verdadeiro contraditório”, aí sim, estamos autorizados – eu, você, os portugueses, o mundo – a emitir um juízo devidamente fundamentado sobre Ricardo Salgado. Até lá, bolinha baixa, que isto não é o PREC.
Deixando de lado o pobre PREC, que tem as costas largas, e o facto de hoje em dia uma nacionalização à moda de 75 até dar um certo jeito a Salgado, eu gostaria de discutir a premissa da presunção da inocência e a forma como ela costuma ser invocada pelos advogados dos donos disto tudo, com esta muito ínvia intenção: querer impor à sociedade e à política um princípio que é do Direito, de forma a que não se fale, não se discuta, não se acuse, não se aponte o dedo. O raciocínio é este: se Salgado é inocente até ser considerado culpado, então façam o favor de calar a boca, que o tempo dos pelourinhos e dos autos-de-fé já lá vai.
Só que, graças a Deus e a todos os santos (menos aos Espíritos), não é assim que as coisas funcionam: se nós só pudéssemos emitir juízos de valor após o Supremo Tribunal se pronunciar sobre a culpabilidade de Salgado, então isto não seria uma democracia. Se eu for hoje para o meio do Rossio dar tiros à multidão, continuo a ser inocente aos olhos da lei até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Significa isso que ninguém poderá dizer que sou um criminoso até 2018? Felizmente, Ricardo Salgado não matou gente, mas a catástrofe do BES é um flagrantíssimo delito, que todos temos o direito de avaliar, criticar e culpar. Buracos de milhares de milhões não se cavam sozinhos. Esta mania de nos irem ao bolso e ainda exigirem silêncio é deveras irritante. Da próxima vez que eu estiver na mesma sala que Proença de Carvalho vou procurar roubar-lhe a carteira, e quando ele gritar “agarra que é ladrão”, colocarei o braço à volta do seu ombro e direi em tom melífluo: “Ó sotôr, autos-de-fé e julgamentos no pelourinho ficam-lhe muito mal. Aguarde pelo contraditório, se faz favor.”