O vírus da insolvência nas escolas públicas

Não há paciência e sensatez para se atacarem os problemas gradualmente, tudo exige reforma, revolução, como se o país não existisse até agora, com os seus méritos e deméritos. Não há estabilidade, não há vontade nem motivação para melhorar. Está em gestação nas escolas públicas o vírus da sua insolvência. Mais cedo do que tarde, o Governo e aos seus émulos terão argumentos para cumprir o seu mais profundo desejo: o de criar em Portugal um el dorado das escolas privadas.

Esta semana o ministro Nuno Crato foi ao Parlamento anunciar mais um passo nessa estratégia. Cauteloso, não disse tudo o que queria e podia dizer sobre a estratégia do Governo, que no próximo ano reforça o estímulo financeiro à passagem de alunos da escola pública para a privada. Deixou sim um argumento, na aparência, sensato: os pais não se preocupam em saber se a escola é pública ou privada, querem é que seja boa. Mas há um juízo subjacente neste pensamento que torna a sua candura perversa: é que, na opinião do ministro as escolas privadas são por natureza e definição melhores do que as públicas. O que aqui está subjacente é uma visão ideológica do mundo. Tão legítima como qualquer outra, mas ao mesmo tempo tão discutível como as que se lhe opõem. Só é pena que Crato não esteja disposto a abrir o jogo. Teremos de esperar por portarias regulamentares.

O que se soube, porém, bastou para demarcar o debate. Francisco Assis, deputado do PS, lembrava no PÚBLICO que, “se há batalha política que a esquerda democrática deve travar é precisamente esta, a da defesa da escola de inspiração republicana, indispensável à afirmação de uma comunidade de cidadãos livres e iguais”. A resposta chegou logo depois pela opinião de José Manuel Fernandes. A sua tese é que “as escolas estão a falhar a sua missão”, pelo que se exige uma mudança e essa mudança dispensa um “axioma” do debate público que tende a considerar que “tudo o que é público é virtuoso e tudo o que é privado pecaminoso” - embora pudesse alterar a ordem da equação e reconhecer que o “público” se tornou para muitos a fonte de todos os pecados.

Ninguém discute que há problemas nas escolas do Estado e que os professores e os sindicatos erram ao afirmar que esses problemas não são também da sua responsabilidade – o terem recusado a avaliação projectou sobre eles a imagem de uma corporação adormecida no culto da mediocridade. As suas lutas laborais, mesmo que legítimas e eventualmente razoáveis, tiveram o condão de mostrar “a distância que vai entre os professores da escola pública e os da privada”, como reconheceu o jornalista Dinis de Abreu, no Sol. Mas será caso de dizer que a escola pública está em profunda decadência? Nada o indica. Se nos rankings a colocação das públicas se degradou, o referencial internacional do desempenho dos sistemas educativos, o relatório PISA da OCDE, mostra evoluções muito positivas dos alunos portugueses.

Dizer que as privadas são boas e as públicas más, ou, por outras palavras, que um sistema é por definição bom e outro mau, é por isso um exercício de pura fantasia ideológica. O que é verdade é que o sistema público tende a piorar com menos professores (na Infanta D. Maria, de Coimbra, eram 93 para 863 alunos em 2011/12 e passaram a ser 79 para 1012 alunos este ano), com a degradação social do estatuto dos docentes, com os cortes, com a incerteza e a instabilidade. O que é verdade também é que, internacionalmente, o desempenho dos sistemas que aplicaram o cheque-ensino está longe de ser brilhante. Veja-se o recuo da Suécia nos indicadores do relatório PISA ou leia-se o mea culpa de Diana Ravitch, que trabalhou na secretaria de Educação da Administração George W. Bush, hoje uma das principais críticas da privatização das escolas.

O pior que pode acontecer é cair na tentação de ver o mundo das escolas como uma ideologia radical capaz de erradicar os problemas do ensino e da coesão social. É bom que haja escolas privadas, mas também é bom que se reflicta sobre as ameaças que pendem sobre as escolas públicas. Porque na penumbra da discussão entreaberta pelo ministro Nuno Crato há mais riscos do que oportunidades. Essa ideia que um filho de uma família com problemas do bairro do Lagarteiro no Porto pode frequentar um colégio da elite não resiste à realidade: nem a família tem meios para aspirar a esse sonho, nem o colégio está disposto a comprometer o seu estatuto de elite onde só cabem bons alunos e alunos que não dão problemas disciplinares. Essa ideia de que todos poderiam ir para os bons colégios é uma utopia generosa mas perigosamente parecida com os amanhãs que cantam de outrora. A desigualdade de oportunidades infelizmente existe e a comunidade política representada pelo Estado não pode deixar de lutar contra ela no seu próprio terreno: o das escolas públicas. 

2- Esta semana uma conferência de imprensa convocada pelas comissões de coordenação do Centro e do Norte e pelas associações empresariais das duas regiões foi anulada em cima da hora. Pouco depois soube-se que o telefonema de um membro do Governo tinha travado a veleidade dos presidentes das CCDR e dos empresários. O acto falhado bastou no entanto para expor o seu cesarismo da administração pública e a sua incapacidade de perceber que há pessoas e interesses com direito a representação fora dos círculos da capital.

O que à superfície estava em causa era a apresentação de um estudo sobre as necessidades de infra-estruturas do Norte e do Centro para o próximo ciclo de fundos estruturais. Mas a realidade mais profunda era outra. O que moveu as comissões e as associações empresariais foi o protesto contra a criação de um gabinete destinado a inventariar os “investimentos de valor acrescentado” no qual metade do país e mais de metade da economia privada nacional não tinha qualquer tipo de representação. Num tempo em que se pede empenho aos empresários, numa era em que o sucesso das exportações é crucial, o Governo, pela mão do secretário de Estado dos Transportes, dispensa a participação de duas regiões fundamentais para a criação de “valor acrescentado”.

Seria inocente acreditar que esta omissão simboliza apenas o absurdo do centralismo. O que está em causa é mais perigoso. Para o Governo, e bem, o dinheiro que aí vem da Europa será para as empresas e para a competitividade, mas o que sobrar para infraestruturas parece ter o destino traçado: Sines e Trafaria. Ora, se há consenso sobre a importância estratégica de Sines, a Trafaria só se explica com a necessidade de este Governo, como todos os governos, precisar de uma obra para glorificar o seu regime. Para que nada perturbe esta “visão” radiosa, o secretário de Estado Sérgio Monteiro faz bem em ignorar os interesses e eventuais necessidades do Norte e do Centro. Eles que se calem e que continuem a fazer o que tão bem fazem: empresas, negócios e exportação. 

Sugerir correcção
Comentar