Os socialistas e a “esquerda da esquerda”

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Começo por uma história de fantasmas. Quando o Syriza ganhou as eleições gregas de Janeiro, alguns sectores do PS português evocaram o fantasma da “pasokização”. Nesta linha, a simpatia manifestada perante a vitória de Alexis Tsipras tinha implícito um desejo de “viragem à esquerda”. O fantasma voltou na ressaca da derrota de 4 de Outubro e tornou as coisas um pouco mais claras. É um “problema estratégico”, escreveu um dirigente socialista: se o PS viabilizar um governo de Passos Coelho vai “pasokar”. Traduza-se o raciocínio: o PS acabará devorado pelo Bloco de Esquerda se não se aliar ou aproximar dele.

Este argumento merece uma breve rectificação. O Syriza está inocente no desabamento do Pasok, partido velho e anquilosado, clientelista e corrupto, cujo fundador, Andreas Papandreou (1919-1996), inventou nos anos 1980 o fabuloso modelo do “socialismo da dívida” que duas décadas depois levou a Grécia à bancarrota e à tragédia. O Pasok pagou a factura e implodiu. Que o Syriza tenha atraído parte do seu eleitorado é outra questão.

A crise aberta depois das eleições é uma disputa do poder e de legitimidade. Mas tem outras dimensões, como os dilemas estratégicos dos partidos socialistas, o tema que aqui me interessa. A relação entre socialistas e esquerdas radicais levanta múltiplas questões. Mas o que é determinante é aquilo que o PS ou uma “maioria de esquerda” contam fazer com o poder. A lógica das alianças está subordinada ao seu projecto político.

“A esquerda pode morrer”, proclamou no ano passado o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, advogando a necessidade de uma ruptura com o “conservadorismo” da esquerda, com a enquistada resistência à mudança que encobre a recusa de olhar as transformações do mundo e tirar as consequências. No caso do PS português, e sem saber o desfecho das negociações (escrevo na sexta-feira), a opção por uma “maioria de esquerda” daria o sinal inverso: meter na gaveta as reformas de fundo pois é neste terreno – basta pensar na segurança social – que mais irredutível será a contradição entre o PS e a “esquerda da esquerda”. Para não falar no euro, na NATO ou na “tempestade perfeita” em que a Europa está a mergulhar, pontos de elevado atrito e que o PS tenta colocar entre parêntesis.

Sob a capa de uma “ruptura histórica” no quadro das alianças, a “maioria de esquerda” indiciaria uma opção “conservadora”, no sentido de que inviabilizaria reformas ou “pactos de regime” que ameacem o statu quo.

Corbyn
Passemos um olhar por duas outras eleições. As vitórias e as derrotas vão e vêm. E os partidos tiram lições distintas. Na Inglaterra, a derrota do Labour nas eleições de Maio trouxe a surpresa Jeremy Corbyn. A sua eleição como líder trabalhista não significou a vontade de um regresso rápido ao poder. Pelo contrário, traduziu uma revolta contra os compromissos que governar impõe. Explicou no The Guardian o analista Jonathan Freedland que o que está em causa na mobilização pró-Corbyn “nada tem a ver com a construção de uma maioria governamental, com a conquista do poder ou até com uma mudança da sociedade. O que está em causa é a identidade”. É a “autenticidade” do partido e dos militantes. Apenas 10% dos adeptos de Corbyn consideraram importante que o líder do partido compreendesse “o que é necessário para vencer uma eleição”. Por isso não os preocupa que Corbyn assuma o programa trabalhista dos anos 1970.

A crise não revigorou apenas os conservadores. Fez também ressurgir as velhas esquerdas que, fazendo um uso eficaz dos novos meios de comunicação, propõem o mesmo programa de sempre, da nacionalização dos sectores estratégicos à tentação soberanista e de isolamento económico.

Esta disputa tem ainda uma dimensão moral. “Os moderados do Labour cometeram um grave erro estratégico ao permitir à esquerda reclamar a superioridade moral”, comentou no The Guardian o colunista Rafael Behr. “Corbyn não tem o monopólio da virtude.” Os moderados “foram cúmplices na divisão do Labour em duas esferas: a dos princípios, que pertence à esquerda [trabalhista], e a do cálculo cínico, própria da direita [trabalhista]”.

Renzi
Como contraste pode referir-se a via do Partido Democrático (PD) italiano, de Matteo Renzi. Os militantes estavam cansados de perder eleições. Nas legislativas de 2013, o então líder, Pierluigi Bersani, cometeu a proeza de não ganhar apesar de Berlusconi ter perdido. Muitos eleitores fugiram para o populista Beppe Grillo ou para a abstenção. A politóloga Elisabetta Gualmini pôs o dedo na ferida: “[O PD] é um partido que renunciou a elaborar um programa e uma estratégia para vencer eleições, preferindo defender a identidade interna e os grupos dirigentes, velhos e novos, que lhe são fiéis.”

Essa derrota abriu caminho para que Matteo Renzi fosse eleito secretário nacional nas primárias de Dezembro de 2013, com a maioria absoluta entre militantes e eleitores. Em Fevereiro seguinte, assumiu a chefia do governo para se lançar numa frenética política de reformas, apesar de contar com uma frágil e estranha maioria parlamentar. Renzi era um alien dentro do partido, dominado pela cultura política do século XX. Foi legitimado por uma esmagadora vitória nas eleições europeias de 2014.

Escreveu-se: “A esquerda reaprendeu a vencer”. Como? A tradição da esquerda visava assegurar o eleitorado fiel, com um discurso centrado na identidade partidária, para depois fazer alianças, naturais ou bastardas. Renzi falou sempre para fora do partido. Observou no La Repubblica o jornalista Massimo Gramellini: “O teorema de Renzi, que subverteu as leis da física política italiana, reza o seguinte: para transformar uma minoria em maioria é preciso ir buscar votos aos adversários.”

Renzi mudou o estilo de fazer política, mudou a linguagem e começou a demolir os fetiches ideológicos da “velha esquerda”. Quer pragmaticamente reformar as instituições. Depois das leis do trabalho, acaba de concluir a primeira grande reforma constitucional ao mudar o papel do Senado, fonte da instabilidade governativa. A esquerda tem o dever de salvar o welfare state, mas para isso tem de o racionalizar. A prioridade é o emprego, sobretudo para os jovens, mas para isso exige destruir o apartheid entre os que estão dentro, e são protegidos, e os que estão fora e não têm direitos. O modelo da flexi-segurança, de inspiração nórdica, é uma das vias, contestada embora pelos sindicatos que denunciam o trabalho precário mas apenas defendem “os que estão dentro”. Note-se que, na Itália, o debate sobre o trabalho remonta aos anos 1990 e foi quase sempre conduzido pela esquerda.

Preveniu Renzi: “Perante as mutações da sociedade, a esquerda tem medo. Parece que não se dá conta de que o novo mundo em que vivemos é também fruto do sucesso das suas próprias políticas, das mudanças ocorridas no século XX graças à sua iniciativa.” E ironizou provocatoriamente: “Uma esquerda que não muda é de direita.”

Da social-democracia
É altura de mudar de registo. As opostas decisões do Labour e do PD não escondem, antes sublinham, que a esquerda tem um sério problema. A crise financeira atingiu mais os partidos socialistas e sociais-democratas do que os conservadores por terem mais dificuldade em formular um projecto próprio para lhe responder. “Falta-lhes um discurso convincente sobre a globalização, a imigração e a redistribuição no contexto de penúria orçamental”, assinala a politóloga francesa Pauline Schnapper.

Desespera Jean-Christophe Cambadélis, primeiro secretário do PS francês: “Todas as esquerdas europeias perderam o debate cultural. A igualdade era antes o ponto central de debate. (…) Agora passa para primeiro plano o conceito de identidade: o meu povo, a minha região, o meu país (…) perante a Europa e a globalização. (…) A grande dificuldade é voltar a centrarmo-nos no tema da igualdade, quando as circunstâncias tornam impossível a redistribuição.”

A debilidade dos partidos de esquerda manifesta-se de acordo com especificidades nacionais mas deriva de transformações estruturais ocorridas nos últimos 40 anos, bem antes da queda do Muro de Berlim e dos seus efeitos ideológicos.

 A social-democracia assentava numa aliança tácita entre a classe operária e as novas classes médias assalariadas, que começou a romper-se nos anos 1970. Esta “coligação” tinha como pressupostos um crescimento económico acelerado – os “trinta gloriosos” – , a promoção social e o desenvolvimento do Estado-providência. O modelo foi posto em causa a partir do “choque petrolífero” de 1973.

Como efeito das mudanças tecnológicas da “era pós-industrial”, e mais tarde da globalização, a classe operária é atacada em termos absolutos e relativos, arrastando o declínio sindical. O “elevador social” desacelera-se. O Estado-providência começa a ser corroído. O neoliberalismo começa a prevalecer sobre o keynesianismo.

Este processo vai culminar numa outra mudança. A esquerda vê fugir a sua base operária. O voto de classe diminui enquanto prosperam o voto flutuante e o de protesto. Em países como a França, a Frente Nacional, de Le Pen, torna-se no maior partido operário. Anunciou o Le Monde: “O mítico ‘povo de esquerda’ funde-se como neve ao sol.”

Também mudou a área conservadora. A Europa foi construída no pós-guerra pelas duas grandes famílias políticas: democratas-cristãos e sociais-democratas. Anota o analista espanhol Andrés Ortega que “a globalização e as mudanças internas nas sociedades minaram a democracia-cristã”, fazendo ascender na direita forças ideologicamente mais radicais.

A “esquerda da esquerda”
À “esquerda da esquerda” proliferam movimentos populistas radicais que parecem de vento em popa. O caldo de cultura é conhecido: o protesto contra as políticas de austeridade, a crise da representação politica, a rejeição das elites dirigentes e a denúncia da “casta”, o discurso anti-euro e, por vezes, anti-UE. “Há no seu discurso uma ressurgência das temáticas dos partidos comunistas dos anos 1970, com a denúncia da CEE capitalista alinhada com o imperialismo americano”, observa o politólogo francês Marc Lazar.

“Esta esquerda da esquerda – prossegue Lazar – seduz certas camadas da população, como assalariados do sector público, pessoas dotadas de alto nível de instrução e jovens em situação de trabalho precário. (…) Mas, fora raras excepções, não atrai as camadas populares que os partidos sociais-democratas e socialistas perderam. (…) O seu peso eleitoral é limitado mas susceptível de penalizar a esquerda reformista.”

O Syriza polarizou durante alguns meses a mobilização desta área. Mas a viragem final de Tsipras foi um balde de água fria. Em Espanha, o Podemos chegou a ocupar o lugar cimeiro nas sondagens e abanou o sistema partidário. Teve o mérito de, ao obrigar os partidos tradicionais a reverem os seus “costumes”, ter ajudado a reabilitar a credibilidade da política entre os cépticos cidadãos espanhóis. Hoje parece estar a descer, sendo a quarta força nas sondagens.

Esta “esquerda da esquerda” oscila entre “o esplêndido isolamento” e a vontade de fazer alianças que lhe permitam aceder à área da governação, tentando forçar a esquerda reformista a adoptar uma parte dos seus temas. Noutros casos, a denúncia do euro e da autoridade europeia arrisca-se a conduzir a uma radicalização soberanista e a uma perversa convergência entre extrema-esquerda e extrema-direita.

As alianças entre socialistas e esquerdistas são sempre precárias e não apenas pela contradição programática mas porque, em última análise, a pulsão dominante da “esquerda da esquerda” é a desconfiança perante o exercício do poder e a partilha de escolhas políticas que ponham em causa a sua identidade –  como a viragem do Syriza bem o ilustrou.

Note-se que esta tensão atravessa os próprios partidos socialistas. A social-democracia tornou-se historicamente numa grande força política porque escolheu a vocação de governar e não se acantonou numa posição tribunícia de denúncia do capitalismo. Evocando a oposição da esquerda socialista francesa ao governo Valls, assinala Gérard Grunberg, historiador do socialismo francês: “Esta esquerda da esquerda [do PS] gosta do poder mas quando é necessário tomar medidas impopulares prefere o conforto ideológico da oposição às dificuldades da acção governamental. Assume então a postura de partido de protesto, a função tribunícia outrora desempenhada pelos comunistas franceses.”

Quanto ao destino destas alianças, deixo a conclusão a Grunberg: “O dilema do Partido Socialista francês é que, se quer permanecer como partido de governo, tem de assumir políticas que impedem uma união da esquerda.” Em Portugal, a conclusão não seria muito diferente.

Negar a realidade
Interroga-se Manuel Valls sobre o que é ser de esquerda hoje num mundo globalizado e avesso a utopias. “O pior é que a esquerda se revela hoje incapaz de regenerar o Estado-providência adaptando-o às realidades da nossa época. À falta de afrontar as consequências da globalização e da individualização da sociedade, a esquerda fecha-se numa concepção pessimista do mundo.”

As dificuldades do discurso da esquerda começam na resistência a reconhecer a realidade. As sociedades ocidentais mudaram profundamente. O quadro de combate deixou de ser o do século XX e grande parte da esquerda continua a viver no século passado. Tende a negar a realidade quando os factos entram em choque com os seus valores ou opiniões. “Mas é um erro lógico”, responde o italiano Luca Ricolfi. “O plano dos valores e dos factos são separados. (…) Não podemos ter medo de conhecer se queremos mudar a realidade.”

Um breve exemplo italiano: no recente debate sobre o trabalho, os reformistas denunciavam o “mito do emprego fixo para toda a vida” em nome do crescimento, da equidade e dos jovens. “Para os jovens, o trabalho precário não é um parêntesis no seu percurso, é uma ratoeira. Apenas um em cada três consegue passar a um contrato por prazo indeterminado. Os jovens devem apostar no emprego estável mas não podem sonhar com um trabalho vitalício na mesma empresa. Esse mundo desapareceu.” A alternativa à reforma é a flexibilização sem regras e a “selva do trabalho precário”.

A “tempestade perfeita”
A pretexto do PS português, passei em revista coisas que se dizem sobre os dilemas com que a esquerda europeia se debate, sobretudo no Sul. Para permanecer no plano da realidade é inevitável uma referência à conjuntura da Europa, que o debate português coloca entre parêntesis.

Cito o espanhol José Ignacio Torreblanca, do European Council on Foreign Relations. “A Europa está exposta a um perigosíssimo cruzamento de três crises que até agora corriam em paralelo: a crise de gestão do euro, com o seu clímax grego; a crise do asilo e do refúgio, que ameaça fazer mandar pelos ares a livre circulação das pessoas; e a crise da nossa vizinhança que, da Ucrânia à Líbia passando pela Síria, põe a nu a debilidade da política externa europeia. Separadamente, cada uma destas crises expõe as profundas fracturas que percorrem o projecto europeu. Juntas, formam uma tempestade perfeita que, a não haver uma reacção à altura das circunstâncias, pode acabar com o projecto europeu. A construção europeia assenta hoje nestes três pilares: o euro, a livre circulação de pessoas e os valores europeus. Se retirarmos qualquer deles, o edifício dificilmente se sustentará.”

Uma esquerda que iluda os eleitores sobre a possibilidade de um regresso à idade de ouro da social-democracia ou que ponha entre parêntesis a tempestade que se aproxima não tem futuro nem sequer grande presente.

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