O futuro comissário Carlos Moedas quer pôr as empresas a investir em ciência
Ouvido esta terça-feira no Parlamento Europeu como comissário indigitado para a ciência, Carlos Moedas deixou para trás um Governo que aplicou medidas de austeridade e cortes na ciência portuguesa. A isso respondeu: “Muitas vezes estive em desacordo com a troika”.
Além de se assumir um europeísta convicto e prometer muito diálogo futuro com o PE, Carlos Moedas disse que iria tentar encontrar políticas que fomentassem as pequenas e médias empresas a apostar na ciência e na inovação – um impulso fundamental, segundo o político, para que a média do produto interno bruto (PIB) europeu aplicado em ciência se aproxime dos 3%. “Temos de criar formas inovadoras e inventivas para darmos mais incentivos ao investimento dos privados”, referiu.
Além disso, prometeu, em inglês, que o seu foco seria “delivery, delivery and delivery”, ou seja, apresentar “resultados, resultados e resultados” como fez nos últimos três anos no Governo de Pedro Passos Coelho.
De resto, ficou a saber-se pouco mais sobre o destino dos 80.000 milhões de euros do programa europeu de ciência Horizonte 2020, a aplicar no período 2014-2020, que sucede ao Sétimo Programa-Quadro de Investigação. Mesmo a declaração que fez durante a audição, dizendo que “muitas vezes” discordou da política de austeridade da troika, que monitorizou como secretário de Estado ajunto do primeiro-ministro Passos Coelho, Carlos Moedas garantiu que não era novidade.
“Não é a primeira vez que digo que não estou de acordo com a troika”, referiu aos jornalistas numa conferência de imprensa após a audição. Exemplos dessa discordância? Em relação aos cortes nos salários: “A minha filosofia sempre foi a da inovação e da produtividade.”
E, no entanto, o comissário indigitado para a ciência fez parte do Governo que tem sido muito contestado pela comunidade científica devido aos cortes no financiamento da investigação e à sua política científica, e que agravou a queda do PIB português gasto em investigação. De 2009 para 2010, o PIB caiu de 1,64% para 1,59% – ainda no governo socialista de José Sócrates –, e para 1,52% no ano seguinte, já com o executivo de Passos Coelho. Em 2012, voltou a descer para 1,50% (ainda não se conhece o valor de 2013).
Mas foram os cortes nas bolsas individuais de investigação que levaram à contestação pública da política científica portuguesa: em 2012, atribuíram-se 1198 bolsas de doutoramento, que baixaram para 399 em 2013. Já as bolsas de pós-doutoramento passaram de 667, em 2012, para 438, em 2013, ano em que também se atribuíram pela primeira vez 431 bolsas para programas de doutoramento. O resultado final é assim de um total de 1865 bolsas em 2012 contra 1268 em 2013.
Na audição, a eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda, Marisa Matias, foi céptica em relação à futura prestação de Carlos Moedas como comissário europeu, já que, defendeu, o novo cargo está “nos antípodas” da política de cortes.
“Foi muito difícil, foram sacrifícios enormes, sempre reconheci a dureza do programa”, respondeu-lhe Moedas. “Portugal estava num momento em que precisava de mostrar a sua credibilidade àqueles que deram dinheiro”, insistiu, acrescentando: “Muitas vezes estive em desacordo com a ‘troika’.” Mas para Carlos Moedas, o seu trabalho deu provas: “Sou uma pessoa que apresenta resultados e no Horizonte 2020 é importante ter uma pessoa que apresenta resultados.”
“A minha história é europeia”
Só a 22 de Outubro é que se saberá se os 27 candidatos da Comissão de Jean-Claude Juncker vão passar a comissários. Nessa altura, haverá uma votação pelo Parlamento Europeu de Estrasburgo.
Antes, entre 29 de Setembro e 7 de Outubro, cada um dos comissários indigitados é ouvido pela respectiva comissão do Parlamento Europeu: há uma votação para cada um deles por parte da comissão parlamentar, que não é a última palavra mas é um indicador forte daquilo que poderá acontecer a 22 de Outubro. Se há um comissário rejeitado ao longo do processo, então Jean-Claude Juncker terá de escolher outra pessoa para a pasta, que terá de passar por esta audição.
Carlos Moedas não fazia parte dos candidatos a comissários polémicos. A defesa que fez nesta terça-feira na comissão parlamentar da Indústria, Investigação e Energia foi bem-vista e à tarde, nos corredores Parlamento Europeu de Bruxelas, já se sabia que a votação tinha sido favorável ao português. Houve votos contra, como do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, onde estão os eurodeputados Marisa Matias e João Ferreira, este eleito pela CDU.
“A minha história é uma história europeia”, disse Carlos Moedas, quase no início do discurso que fez antes de se iniciarem as questões na audição. O social-democrata nasceu em Beja em 1970, e tirou engenharia civil no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, “graças a um sistema de ensino que a democracia fez com que fosse inclusivo e aberto”, defendeu na audição. Em 1993, foi para Paris no primeiro ano do programa Erasmus, um “momento definidor”. Mais tarde, esteve nos Estados Unidos, onde completou um MBA na Harvard Business School, que lhe permitiu estagiar e trabalhar na Goldman Sachs, em Londres. Só depois, já em 2004, voltou a Portugal, onde fundou uma empresa de investimentos.
Agora, vai gerir um orçamento também definidor para a ciência europeia. O programa Horizonte 2020 assenta em três pilares: desafios sociais, ciência excelente e liderança industrial. Carlos Moedas disse querer pôr em prática o programa o mais “eficientemente possível”. As outras duas prioridades serão desenvolver “o potencial da investigação, da ciência e da inovação europeia” e “defender o valor da excelência na ciência e na investigação”.
Para João Ferreira, a retórica da excelência é enganadora. “Justifica a continuação e até o agravamento do fosso científico e tecnológico. Justifica que sejam países em dificuldade como Portugal a financiar a ciência dos ricos. Isto é uma situação inaceitável”, defendeu o eurodeputado aos jornalistas, referindo-se à questão de Portugal ter dado mais dinheiro para o bolo dos programas-quadros europeus do que o dinheiro que foi buscar a este bolo.
Na audição, Carlos Moedas desvalorizou esta questão de João Ferreira, explicando que actualmente já não é assim e que União Europeia é mais do que isso. “A Europa não é matemática, é a capacidade de vermos a importância da ciência e investigação na participação do futuro europeu”, referiu, acrescentando que uma grande mais-valia é a movimentação dos cientistas portugueses no espaço europeu.
“Profunda contradição”
“O programa político prevê dirigir milhões de fundos públicos para parcerias público-privadas”, assim explicou João Ferreira as razões da sua parte para o chumbo deste comissário. Esse programa, especificou ainda o eurodeputado da CDU, prevê canalizar “para o sistema financeiro especulativo o dinheiro público dirigido à ciência”.
Por seu lado, Marisa Matias fala de uma “profunda contradição” entre o discurso de Carlos Moedas e os seus actos. “Foi o próprio Carlos Moedas que referiu que foram os países que melhor suportaram a crise que tinham o sistema de ciência e de inovação mais consolidado, mais desenvolvido, com maior investimento público. Só não retirou daí nenhuma conclusão, porque fez parte do Governo que mais destruiu o sistema científico em Portugal”, disse aos jornalistas.
O único elogio da oposição veio de Carlos Zorrinho, que disse que Moedas estava “bem preparado”. Apesar disso, o eurodeputado socialista está expectante. “Perguntei-lhe se se bateria para que não houvesse cortes do orçamento no Horizonte 2020 e sobre isso não respondeu”, lembrou depois aos jornalistas, e antecipou um braço-de-ferro entre a Comissão Europeia e o Conselho Europeu, composto pelos chefes de Estados e de Governo dos países-membros. “De manhã receberá um telefonema de Jean-Claude Juncker a dizer ‘investe, investe, investe’. Ao fim da tarde, Passos Coelho, que tem assento no Conselho e não tem feito nada para aumentar o investimento nesta área, vai telefonar a dizer ‘corta, corta, corta’”, ironizou. “Vamos ver se Carlos Moedas vai estar do lado de quem investe ou de quem corta.”
O PÚBLICO viajou a convite do Parlamento Europeu