“Os homens não gostavam de ser mandados por mulheres. Ainda hoje não gostam”
Foi “uma das cinco magníficas” eleitas presidente de câmara em 1976. Na Mealhada, enfrentou preconceitos e procurou mudança. Aos 83 anos, Odete Isabel ainda luta pela igualdade.
Quando a geografia da Mealhada lhe pôs diante dos olhos a desigualdade, Maria Odete Isabel era ainda muito nova para perceber a extensão do conceito. A cidade onde crescia, e na qual os pais vendiam peixe porta a porta, era dividida pela estrada nacional: “De um lado a burguesia, do outro os pobres.” Os bolsos semivazios dos pais definiram-lhe um lugar no “mundo desigual” do Estado Novo. Mas não previram um outro embate, que marcaria a sua vida: os muros erguidos às mulheres.
Numa esplanada de Coimbra, Odete Isabel acode à aflição da trabalhadora do café, que lhe pede ajuda para saber notícias do pai internado no hospital. “Ponha-me o nome dele num papel”, sugere. Quase 14 anos depois de se reformar, mantém laços fortes com a comunidade. Nas ruas, muitos reconhecem-na: como farmacêutica hospitalar, mas também como mulher que rasgou normas e entrou nos manuais de História do país. Maria Odete Isabel é “uma das cinco magníficas” eleitas presidentes de câmara em 1976, nas primeiras autárquicas da democracia portuguesa, onde 299 dos 304 municípios foram ganhos por homens.
Meio século depois de Abril, Portugal tem 29 presidentes de câmara mulheres, num total de 308 municípios. Um avanço demasiado curto, espelho de uma falha colectiva: “Não conseguimos transmitir às gerações seguintes os valores de Abril”, avalia. “Ainda falta muito para a maioria ser feliz. Persistem demasiadas desigualdades.”
Contra muitos
Odete Isabel foi candidata num país a desenvencilhar-se de uma longa ditadura. Não sem dores. O chefe no hospital de Coimbra, onde trabalhava como farmacêutica, tentou demovê-la. Mas, já calejada do preconceito, não aceitou o não: “Era a segunda vez que me castravam, daquela não ia deixar.”
Convencido o chefe, com a promessa de cumprir apenas um mandato, outro muro surgiu. O pai ameaçou não a reconhecer como filha e avisou-a do que enfrentaria: “Vão chamar-te coisas horríveis.” De nada valeu. Aos 36 anos, com o apoio da mãe, foi candidata do PS. E viu as previsões paternas confirmadas. “Como era solteira, diziam que só procurava um gajo para me casar e que devia estar em casa”, conta Odete Isabel, 83 anos, cabelo vermelho e sapatilhas nos pés. E como reagiu? “Era a reacção natural do patriarcado contra uma mulher que lhes tirou um lugar.”
Freguesia de Barcouço, Mealhada. Odete Isabel estaciona o carro e não precisa de fazer apresentações: o jardim-de-infância – e agora também escola primária – tem o seu nome. “É o meu maior orgulho.”
A ideia surgiu na campanha eleitoral de 1976. Numas vinhas, testemunhou as amarguras de mães sem apoio que levavam as crianças para o trabalho e as mantinham deitadas em cestas de vime. A socialista, sem filhos mas com três sobrinhos, viu ali mais uma prova do mundo desigual. “Pensei: Está na altura, tenho de fazer alguma coisa.’” No seu mandato, abriu três infantários em casas pré-fabricadas. “Fomos pioneiros no ensino pré-primário.”
Como autarca percebeu muitas vezes o desagrado alheio. “Os homens não gostavam de ser mandados por mulheres. Ainda hoje não gostam.” No final dos anos 1970, a igualdade entre géneros prevista na Constituição estava longe de estar assimilada. Mas o mais doloroso, diz, é “continuar assim” em 2024.
A ex-autarca atribui culpas à Igreja (“a grande responsável pela discriminação da mulher”), mas também às mulheres (“são responsáveis quando educam os filhos para a desigualdade”). Ela, que optou por não ser mãe, tentou desconstruir esses papéis com os sobrinhos: “Um dia ofereci uma boneca ao rapaz. A minha irmã ficou muito zangada. Foi uma provocação.”
A maior inspiração política surgiu no Porto, onde se licenciou em Farmácia depois de ser afastada do sonho de ser cirurgiã (“Cirurgiã, tu que és mulher? Esqueces-te que as mulheres não têm mãos para operar”, sentenciou um amigo e conselheiro dos pais). Ao conhecer Maria de Lurdes Pintassilgo, primeira e única mulher a ser primeira-ministra em Portugal, em 1979, um mundo novo se abriu: “Até aí não me tinha apercebido da discriminação que sofria por ser mulher.” Foi um divisor de águas. “Ela dizia-me: ‘A humanidade é como uma ave com duas asas: uma homem e outra mulher. Enquanto não baterem da mesma forma não há equilíbrio’”, conta. “Isto foi a bandeira da minha vida. Ainda é. Enquanto tiver forças hei-de lutar por isso.”
Nesse caminho, as quotas não lhe agradam muito: “Não sou a favor – mas é verdade que sem elas estaríamos muito pior.” Para equilibrar asas, acredita, “é preciso mais mulheres que nos inspirem em cargos de poder”.