Os tauros já chegaram a Portugal para ajudar a recriar paisagens com 20.000 anos
Há uma nova raça de bovinos com características do extinto auroque que pode viver sozinha na natureza. É uma das peças do puzzle que a Rewilding Portugal está a montar no vale do Côa.
O Auroque olha para nós. Ele é uma novidade na paisagem. Uma fina mancha clara percorre o dorso do bovino, que de resto tem uma pelagem muito escura e um corpo preparado para a vida selvagem. Ele olha para nós e os cornos desenvolvidos, virados para a frente, não passam despercebidos. Não há medo ali. Mas também não parece haver ameaça.
O touro é o macho dominante de uma manada que conta com outros 15 elementos que estão mais afastados, numa área contida de 5000 metros quadrados, circundada por uma cerca electrificada. Observamos o macho do lado de fora da cerca, sem perigo. Mas o crescente movimento de pessoas a aproximarem-se não passa despercebido aos animais. Eles são o centro das atenções.
É o final da manhã e estamos num dos extremos do Ermo das Águias, perto da aldeia de Mangide, no concelho de Pinhel, na Beira Alta. O terreno, que ao todo tem cerca de 700 hectares, fica na margem esquerda do rio Côa e pertence à Rewilding Portugal — Grande Vale do Côa, uma organização privada sem fins lucrativos que quer restaurar as dinâmicas ecológicas naturais ao longo daquele vale.
O grupo de bovinos chegou no início de Abril e faz parte daquele esforço. Estes animais pertencem a uma raça nova chamada tauros, criada nos últimos anos pela Fundação Tauros, dos Países Baixos, com características específicas para poderem viver na natureza sem necessitarem de gestão humana. São os primeiros a chegar a Portugal.
“Isto faz parte da estratégia que temos mais ou menos delineada para promover o pastoreio selvagem. Ou seja, para aumentar o número de herbívoros de grande porte nestes ecossistemas”, explicará depois, ao PÚBLICO, Pedro Prata, biólogo e líder da Rewilding Portugal desde a sua fundação, em 2018. Os herbívoros terão diversos papéis importantes que desempenham naturalmente, desde produzirem heterogeneidade nos ecossistemas do território até ajudarem a diminuir a biomassa vegetal, que de outro modo se arrisca a ser combustível para os incêndios florestais.
“Começámos com cavalos e agora estamos a completar com bovinos para substituir as funções do auroque extinto. Estes tauros foram desenvolvidos com esse propósito e trouxemo-los para complementar a guilda de herbívoros”, acrescenta.
Os auroques (Bos primigenius) foram provavelmente os antepassados do gado bovino (Bos taurus). Eram animais que chegavam a ter 1,86 metros de altura e pastavam pela Europa, Ásia e o Norte de África. Há cerca de 20.000 anos, as populações humanas que percorriam esta região gravaram auroques nas hoje famosas rochas de Foz Côa. Os bovinos faziam então parte do quotidiano daquele vale, juntamente com os cavalos, veados e cabras, segundo as gravuras rupestres, que se tornaram uma janela para aqueles tempos.
Ao longo dos milénios, a caça excessiva foi levando à redução contínua das populações de auroques. Um pequeno grupo viveu na Polónia até 1627, quando o último indivíduo da espécie, uma fêmea, morreu.
Mas é 2023, menos de 400 anos depois, e encontramo-nos aqui, perante um animal criado pelo homem para ocupar o papel e o lugar ecológico do seu antepassado extinto. E que no caso do macho dominante até ficou com o nome da antiga espécie. O Auroque a ser um auroque, portanto.
O Côa vai à frente
Afastamo-nos do tauro e escalamos os pedregulhos graníticos que pincelam o território montanhoso, juntamente com a vegetação arbustiva e uma ou outra árvore. Do cimo do monte, vão descendo pessoas que querem assistir de perto ao momento simbólico que vai ocorrer dali a uns minutos: a libertação dos bovinos para um terreno maior.
A manada vai tornar-se a população fundadora de tauros na região. As três semanas que ficaram na área contida serviram de quarentena para confirmar que não havia doenças, e também para permitir que os animais se fossem adaptando ao clima do seu novo habitat. Há ração espalhada pelo chão e o cheiro comum que acompanha os dejectos dos bovinos, que serão um futuro manancial de nutrientes para as sementes que estes herbívoros engolem, ao alimentarem-se do pasto que cresce.
Entre os murmúrios e o zumbido dos insectos, algumas dezenas de pessoas esperam, acompanhadas por um drone que tudo filma a partir do céu. A Rewilding Portugal faz parte de uma rede de dez áreas de renaturalização sob a égide da Rewilding Europe, que desde 2011 trabalha para expandir a natureza e a vida selvagem através de processos naturais. A libertação dos tauros é um dos momentos que integram a visita do conselho da Rewilding Europe, dos responsáveis das várias áreas de renaturalização e de mais pessoas, incluindo crianças.
Aquelas áreas são “um portefólio de lugares de demonstração, pensados para inspirar outros a fazerem o mesmo”, explica ao PÚBLICO Frans Schepers, director executivo e um dos fundadores da Rewilding Europe. Elas estão distribuídas por toda a Europa, da Escócia à Espanha, da Suécia à Croácia.
“Nestas paisagens fazemos a demonstração de modelos, de ferramentas e de princípios que usamos e que podem ser aplicados em escalas maiores. Em última análise, o que gostaríamos de ver é a renaturalização tornar-se uma abordagem dominante para a recuperação da natureza”, refere o perito, que é também um dos visitantes.
Apesar do pedido repetido para se fazer silêncio, os bovinos foram-se estreitando numa zona mais escondida do terreno. Entre eles está o Côa, um bezerro-macho de pelagem clara que tem alguns dias de vida — foi o primeiro a nascer em Portugal — e recebeu o nome do rio, que é também uma intenção. A Rewilding Portugal acredita que é no vale do Côa que estes animais poderão vir a ser livres, desde a serra da Malcata, onde o rio nasce, até à sua foz, ao longo de mais de 120.000 hectares, resgatando as dinâmicas representadas nas antigas gravuras que sobreviveram até hoje.
Entretanto, a portada que separava a área fechada onde estavam os tauros do resto do território é aberta. Alguns dos profissionais da Rewilding Portugal vão enxotando os animais que, subitamente, começam a correr e se precipitam em conjunto pelo terreno que desce, saltando por cima de rochas, fazendo curvas em velocidade, deixando uma nuvem de pó antes de desaparecerem no vale abaixo.
“Pisgaram-se”, ouve-se.
“O pequeno passou à frente dos outros todos”, observou alguém. “Ia a liderar.”
Foi um espectáculo de segundos, rumo a uma nova vida.
E ao desconhecido.
Desafios de gestão
Por algum tempo os olhos (e os binóculos) dos visitantes fixam-se na paisagem mais vazia, sem os bovinos. Depois, o grupo rodeia Pedro Prata, que começa a explicar o projecto e qual é o papel daqueles novíssimos habitantes. “Eles são engenheiros dos seus próprios habitats”, vai dizendo o biólogo.
Uma das questões levantadas pelo grupo foi acerca das etiquetas que os bovinos trazem nas orelhas. A nível legal, eles não são considerados selvagens e chegaram a território nacional enquanto animais domésticos. Por isso, todos os anos tem de haver uma avaliação e é necessário haver uma gestão.
Mas o objectivo da organização é conseguir alterar o estatuto dos tauros para animais selvagens. Este é um dos desafios que terão de ser ultrapassados para se conseguir estabelecer a filosofia de renaturalização da Rewilding, de modo que a médio prazo os humanos retirem as mãos da gestão daquele espaço e da sua fauna.
Outro desafio é o próprio limite do Ermo das Águias enquanto área para albergar uma população crescente de herbívoros. Além dos 16 bovinos, o terreno conta com 13 cavalos sorraia, situados no outro extremo. Segundo os cálculos da organização, cada herbívoro adulto necessita, em média, de dez hectares para se alimentar. Por isso, em menos de dez anos deverá atingir-se a capacidade daquele território.
E depois disso, o que se faz com os herbívoros? Pedro Prata não quer retirar animais à manada. “O objectivo é que se possa alargar a área de influência da manada, estendendo a vedação por extensão da propriedade, ou por acordo dos vizinhos, com algum tipo de solução que permita aos animais moverem-se em áreas maiores”, explica o biólogo, um pouco depois, quando a maioria das pessoas já se tinha ido embora e foi possível entrar no terreno para observar de longe os tauros.
Afinal, a correria que tínhamos visto há pouco não durou muito tempo. Os animais cansaram-se e estão dispostos mais ao fundo, perto de uma cerca. Há animais deitados, outros pastam calmamente. Esta parte do terreno tem cinco hectares, é dez vezes maior do que a área onde estavam. Embora haja uma “manga” livre que liga este pedaço ao resto do Ermo das Águias, adianta Pedro Prata, espera-se que os bovinos se mantenham ali mais alguns dias até se espalharem por todo o território.
“Animais esbeltos”
Os tauros foram criados a partir de seis raças de bovinos para se obter uma série de características capazes de responder aos desafios das paisagens naturais europeias e aos riscos da vida selvagem.
“O princípio é o da técnica de ‘retro-reprodução’”, lê-se no site da Rewilding Europe. “Ao combinar as diferentes raças de gado com as características desejadas, pode-se criar um bovino com os atributos físicos, o comportamento e a genética que correspondem de perto às do auroque selvagem original da Europa.”
Para isso, a Fundação Tauros usou o caldo genético das raças bovinas limiana, pajuna e sayaguesa, da Espanha, as raças italianas maremmana e podólica, e a portuguesa maronesa. O programa iniciou-se em 2008 e o plano é que em 2025 as manadas estejam totalmente preparadas para a vida selvagem. “Ainda é um processo”, observa Pedro Prata. “Mas, para mim, já está relativamente avançado, ao ponto de termos unidades funcionais como esta manada, para começar aqui.”
Os 15 animais que chegaram a Portugal custaram 30.000 euros à Rewilding Portugal, que teve de pagar mais 15.000 euros de transporte e de outros custos. A organização vai buscar financiamento a fundos públicos e privados.
O número de bovinos vai aumentar, asseguram-nos. Haverá “mais três nascimentos nos próximos meses”, refere Gonçalo Matos, gestor de manadas da Rewilding Portugal, que recebeu os 15 tauros e acompanha de perto a sua evolução. “Aqui as fêmeas são mais adultas, há uma parida e três prenhas bem avançadas”, explica.
Além do Auroque e do Côa, há mais dois machos. Mas os animais estão todos juntos. “Normalmente estas manadas mantêm-se juntas na proporção que houver de sexos”, diz Pedro Prata. “À excepção da época reprodutiva em que há a disputa sexual normal entre machos, em que acabam por estabelecer a sua hierarquia com um dominante que fica com a maioria dos direitos reprodutivos”, adianta.
Estas dinâmicas naturais fazem parte do conjunto de características sociais dos tauros. Outra é o facto de as fêmeas conseguirem reproduzir-se sem ajuda de cuidadores, o que será fundamental para poderem estar sozinhas na natureza.
Também há comportamentos da manada que ajudam na sua defesa, como o facto de os bovinos estarem sempre em movimento, ficando menos expostos aos predadores. “Quando estão calmos, a manada deita-se a olhar para um lado e o touro, confiante, dominante, deita-se a virar para o lado contrário”, exemplifica Gonçalo Matos, que já presenciou aquele comportamento ali.
Depois, há uma série de atributos fisiológicos e anatómicos que distinguem a raça. Os animais têm a coluna vertebral curvada, o que permite movimentarem a cabeça para cima e para baixo e alimentarem-se tanto de pasto como de rebentos das árvores, se necessitarem. A musculatura está mais concentrada na região dianteira, para ajudar na defesa. Ao mesmo tempo, apesar de os machos poderem atingir dois metros de altura e 1000 quilos, são animais mais delgados do que outras raças de bovinos. “São animais esbeltos não precisam de tanto alimento”, refere Gonçalo Matos.
Além disso, as patas são compridas, o que ajuda naquela geografia acidentada. “Estes animais foram criados em planícies, estão aqui há três semanas e já galgam barrocos como nunca vi nenhuma vaca da zona galgar”, assegura Gonçalo Matos, que é engenheiro em agro-pecuária. No caso das fêmeas de tauros, o complexo mamário é muito mais retraído do que nas vacas tradicionais. “Isto é típico de um bovino mais selvagem porque consegue galgar barrocos, passar pelos silvados”, elucida.
Colapso e substituição
Já é tarde para o almoço. Abandonamos o terreno e deixamos a manada sossegada. Durante a subida para os veículos é impossível não reparar nas cores amareladas do campo. “Choveu pouquíssimo”, confirma Pedro Prata. “Em Abril, choveu cinco milímetros. Abril, águas mil, não era?! Temperaturas acima dos 30 graus, nunca visto. É o resultado das alterações climáticas”, sentencia o biólogo.
“Está uma tragédia autêntica”, diz, por sua vez, Joaquim Morgado, um produtor de mel da região, que faz parte da rede que a Rewilding Portugal está a criar naquela região para dar apoio ao turismo de natureza e melhorar a economia local. Há poucas semanas, o produtor inaugurou um projecto de agro-turismo em Vale de Madeira, chamado Côa Honey Comb, e hoje veio ajudar a Rewilding Portugal a trazer pessoas até ao terreno.
“A aveia ficou toda agarrada à terra. O problema é que isto está a piorar de ano para ano”, resume Joaquim Morgado, que é uma testemunha das transformações sociais e agora climáticas que aquela região tem vindo a sofrer. “Isto era gente aqui a rodos nos tempos antigos. Era uma vida. Se a gente desse um “ah!” [no meio do campo], apareciam dez pessoas”, diz, explicando que aqueles terrenos que atravessámos estavam todos cultivados. “Isto está feito em selva qualquer dia”, acrescenta, temendo as consequências de um incêndio lavrar naquela paisagem.
Estas mudanças sociais, climáticas e dos ecossistemas fazem parte das preocupações do movimento de renaturalização que a Rewilding integra.
“Quando há toda uma economia do interior que entra em colapso, porque são territórios com baixa produtividade e as pessoas procuram outro tipo de estilos de vida, há um crescimento de biomassa, os ecossistemas ao abandono tornam-se extremamente proclives a ter fogos intensos e frequentes”, explica ao PÚBLICO Miguel Bastos Araújo, biogeógrafo e prémio Pessoa.
Ou seja, um território cuja actividade primária — o crescimento vegetal — era aproveitada pelo homem através da agricultura e da pastorícia, deixa de ter uma gestão. As vacas, as ovelhas e outros herbívoros desaparecem e abre-se um vazio. “O rewilding [reintrodução de vida selvagem] aparece como uma solução para um modelo económico que estava em colapso”, defende o investigador, que é um dos membros do conselho de supervisão da Rewilding Portugal juntamente com João Wengorovius Meneses, secretário-geral da BCSD Portugal – Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, e Hein van Beuningen, gestor na empresa Nora Green Consulting.
É preciso trazer de volta “os elementos do ecossistema natural antes da ocupação humana”, refere o investigador da Universidade de Évora. “Estamos a tentar substituir ecossistemas geridos por humanos por ecossistemas que se regulam a eles próprios.” No fundo, em vez de a gestão do território ter como referência o regime agrícola instalado na região nos últimos milénios, passa a ser considerado um regime muito mais antigo, de 20.000 anos.
“Obviamente, não se pode trazer espécies extintas, mas pode trazer-se espécies aproximadas”, refere o especialista, que também testemunhou a libertação dos tauros. “Foi emocionante”, admite o investigador, que diz estar curioso acerca do futuro da manada. “Interessa-me saber como se vão relacionar com a paisagem, se vão tornar-se agressivos ou não, como vão lidar com predadores, como o lobo, e com os outros herbívoros.”
Para Miguel Bastos Araújo, este tipo de conservação vai ao encontro da política da União Europeia, que definiu o objectivo de preservar 30% da Europa e, de uma forma mais estrita, conservar a biodiversidade de 10% do território. “Temos 23% do território classificado. Potencialmente, conta para os 30%. Mas depois para os 10%, de forma estrita, temos 0,02%, falta tudo”, afirma.
Paisagem do medo
À tarde, voltamos ao Ermo das Águias, desta vez descendo directamente de Vale de Madeira, onde fica o Centro da Rewilding Portugal. À entrada da área, Pedro Prata explica a situação actual daquele território. “Há uma história de incêndios com uma frequência alta, queremos reduzir isso a um estado quase natural”, explica o responsável. Para isso, é necessário entrarem os herbívoros.
Os cavalos Sorraia foram a primeira espécie de herbívoros introduzida no Ermo das Águias para cumprir aquele objectivo. Antes de ver os cavalos, o grupo caminha por um dos trilhos que estão disponíveis para qualquer pessoa fazer naquele território.
Passamos junto da ribeira dos Gaiteiros, com a sua cascata e lago, e vamos observando a vegetação ripícola, cheia de freixos, que desenha o fundo do vale como que numa dança verde. É uma cor que contrasta com os morros despidos.
Depois, mais adiante, numa região mais plana, os Sorraia fazem a sua entrada triunfal. Sete cavalos vão entrando em fila, atraindo os mais curiosos que se aproximam para fotografar.
Será que os herbívoros já fazem diferença no território? “Se não tivéssemos os Sorraia, estas pastagens que estamos a pisar seriam muitíssimo mais altas”, responde-nos Sara Aliácar, directora de conservação da Rewilding Portugal. Além disso, “temos visto que a composição das plantas com flores é mais baixa quando não existe ‘herbivoria’ por parte dos cavalos. Isso tem um impacto na abundância, na diversidade de insectos e de polinizadores”.
Além dos cavalos e dos bovinos, a guilda de herbívoros só ficará completa com o veado (Cervus elaphus), que ainda não é visto ali, o corço (Capreolus capreolus), um cervídeo mais pequeno que habita a região, a cabra-montês (Capra pyrenaica), que teria de ser trazida, tal como os tauros, e o coelho (Oryctolagus cuniculus).
“Cada um deles tem hábitos específicos de alimentação, tamanhos corporais diferentes e ocupam nichos diferentes”, diz a ecologista, explicando a importância de haver diversidade de herbívoros. “A cabra-montês é muito melhor ramejadora [alimenta-se de folhas e galhos] e consome muito mais biomassa de matos. Um veado é mais ramejador do que pastoreador, e faz isso na floresta, comendo folhas e cascas. O tauro, com a potência que tem, poda as árvores de maneira natural, quebra os ramos baixos, promovendo o crescimento vertical da árvore e diminuindo o risco de incêndio.”
Além disso, esta variedade de herbívoros é “fundamental” para o estabelecimento de predadores como o lobo (Canis lupus), o lince (Lynx pardinus) e até o urso-pardo (Ursus arctos), que é omnívoro. Os predadores também têm uma função importante na transformação dos ecossistemas.
“Se os herbívoros são os engenheiros da paisagem, o arquitecto é o predador”, resume Miguel Bastos Araújo. “Além de diminuírem os efectivos de herbívoros, criam a paisagem do medo. Geram nos herbívoros medo e forçam-nos a ocupar alguns territórios e a não ocupar outros.” Esta heterogeneidade faz com que nos territórios não-ocupados, por serem demasiado perigosos, cresça a floresta.” Daqui nascem mosaicos que “criam paisagens resilientes ao fogo”, remata.
Kruger Park à portuguesa
Esta dinâmica entre herbívoros e carnívoros só pode ocorrer sem gestão humana se houver, no mínimo, um espaço de “100.000 hectares” livre, adianta o biogeógrafo. Neste caso, ao longo do corredor do rio Côa.
“Para haver um ecossistema que se auto-regula é preciso uma certa dimensão, onde é possível ter toda a cadeia trófica a funcionar”, refere Miguel Bastos Araújo. Isto não implica mandar embora as pessoas. “Criamos aqui uma espécie de Kruger Park à portuguesa, não implica não haver pessoas. Pelo contrário, mas implica que a alavancagem económica seja directamente associada ao valor que estamos a criar”, diz o investigador, partilhando a sua visão. Neste caso, o valor provém do potencial de turismo de natureza, do lazer, da possibilidade de ócio e da inspiração cultural e artística que aquelas paisagens podem produzir, enumera.
Neste momento, isso ainda não acontece. A Rewilding Portugal gere apenas mais alguns terrenos naquela região, como o paul de Toirões e o vale Carapito, que ficam mais a sul. São “propriedades mais pequenas que carecem de vários elementos da cadeia trófica e isso tem que ser colmatado por uma interferência humana”, adianta.
Pedro Prata concorda que 100.000 hectares — cerca de 1,2% da área de Portugal continental — é um número “tão redondo que é fácil de entender”, refere. “Não significa que nós temos de comprar toda essa terra. Significa que temos de dar esse espaço aos processos naturais”, defende. Para o biólogo, isso poderá ser feito aproveitando-se as áreas protegidas já existentes, classificando novas áreas, mudando o uso atribuído a partes do território, chegando a acordo com outros proprietários.
“A zona mais nuclear do que é o corredor do Côa ainda não está toda disponível para albergar única e exclusivamente processos naturais auto-regulados. Mas é um objectivo a longo prazo”, refere o biólogo. “Os processos levam tempo, mas acho que é possível.”
A caminhada no Ermo das Águias termina numa mancha verde formada por carvalho-negral (Quercus pyreaniaca). Entre as árvores cresce um exemplar da rosa-albardeira (Paeonia broteri), uma flor roxa pouco comum que está associada a este tipo de bosques. É aqui que é possível ver, com a ajuda de binóculos, um ninho de grifos (Gyps fulvus), com uma cria, nas escarpas que ladeiam o rio Côa. É aqui também que constatamos a diferença que faz estar no meio do arvoredo, à sombra, num dia quente de final de Abril.
Sara Aliácar explicou-nos alguns dos planos que a Rewilding Portugal tem para tentar tornar aquele território mais resistente às alterações climáticas, que deverá trazer para ali um quotidiano mais quente e seco, como já se faz notar. Há espécies vegetais no Sul da Península Ibérica que estão mais preparadas para enfrentar o tipo de clima previsto, adianta a ecologista.
“Aqui temos uma Pistacia, que é a P. terebinthus, a cornalheira, mas há outra Pistacia no Sul, que é o lentisco [P. lentiscus, também conhecida como aroeira]”, aponta Sara Aliácar. Outro exemplo é o medronheiro que ocorre na serra da Malcata. “Estamos a falar de muitos quilómetros de distância”, constata.
O objectivo “é fazer uma migração assistida de espécies, que [naturalmente] demorariam muito a chegar aqui e que sabemos que se adaptarão às novas condições mais áridas”, explica. “Depois temos os cavalos e os tauros que farão de dispersores de semente junto com todos os passeriformes e os pequenos roedores”, antevê.
Será que este tipo de preparação será suficiente para enfrentar o clima do futuro? “Acreditamos que quanto mais completa estiver a capacidade de o ecossistema se regenerar, mais fácil será absorver este novo impacto, que é o que as alterações climáticas vão ditar”, responde Pedro Prata, que quer dar condições para aquele ecossistema se recuperar de décadas de agricultura e de produtos químicos. “Esta é parte da estratégia que inclui reduzir a frequência de fogos, reduzir a biomassa vegetal, aumentar o pastoreio selvagem e a diversidade de espécies de flora e fauna.”
Tudo isto requer tempo e ambição. “A ideia é deixar um plano a médio prazo, até 2050”, diz Pedro Prata. “Deixar as bases para que se possa continuar a trabalhar.”