Infografia
Raio-x a três surtos de covid-19: o lar onde metade dos utentes ficaram infectados
Um surto num lar em Lisboa, em Março, deu origem a 22 casos positivos e dois mortos. Mais de 50% dos idosos ficaram infectados, mais de 70 pessoas tiveram de ser isoladas. Tudo começou com um contacto com uma auxiliar de acção médica. Com a ajuda das autoridades de saúde, o PÚBLICO analisou este e outros dois surtos ao detalhe.
No fim de Março, as autoridades de saúde detectaram um surto de covid-19 num lar no concelho de Lisboa.
Este surto começou numa altura em que o novo coronavírus se disseminava de forma rápida em território português. Apesar de o vírus ter atingido em primeiro lugar, e com particular força, a região Norte, já existiam mais de 100 casos positivos na região de Lisboa e Vale do Tejo na segunda semana de Março. As visitas a idosos em lares já tinham sido proibidas quando este surto foi detectado.
O lar tem 30 residentes com uma média de 87 anos.
Há15 quartos, o que significa que todos os utentes partilham o quarto com outro idoso.
O lar tem 23 funcionários e assistentes a prestar cuidados aos utentes.
Dia 1
O primeiro caso foi detectado numa auxiliar de acção médica.
O contágio aconteceu durante a prestação de cuidados de saúde aos residentes do lar. Esta auxiliar contactou com vários
utentes durante o seu turno.
As autoridades de saúde acreditam que o facto de os utentes terem estado em contacto com a auxiliar pode ter contribuído para o contágio, já que a normal prestação dos cuidados poderá demorar mais do que 15 minutos. Este período de tempo é usado actualmente como a barreira que define um contacto de baixo risco e um contacto de alto risco.
A auxiliar de acção médica desenvolveu sintomas no mesmo dia em que foi prestar serviços ao lar. Foi testada nesse dia. Resultado: positivo.
A Unidade de Saúde Pública em que a auxiliar trabalha é informada de que existe um caso positivo. É activado o plano de contingência. Quatro contactos próximos desta profissional são considerados de alto risco e ficam em isolamento. Nenhum desenvolve sintomas ou fica infectado.
Uma vez que a profissional foi testada no dia em que inicia sintomas, o contacto efectivo dos doentes acabou por não ser muito prolongado. No entanto, como destaca a autoridade da saúde, há que ter em conta que o período de infecciosidade poderá começar entre 48 a 72 horas antes do desenvolvimento dos sintomas.
Dia 3
Dois dias depois do primeiro caso, todos os residentes e funcionários presentes no lar naquela altura são testados. No total, há agora 11 novos casos positivos (dez residentes, um funcionário). Todos os trabalhadores do lar são colocados em isolamento profiláctico.
Nesse dia, todos os residentes são transportados para umhotel. Esta unidade de retaguarda estava pronta para acolher os idosos, com divisões suficientes para se fazer isolamento dos casos e dos seus contactos. Havia acompanhamento médico 24 horas por dia. O lar ficou vazio e foi desinfectado.
Dia 4 e 5
São registados dois novos casos em funcionários (um em cada dia). O surto tem agora 14 infecções associadas.
Dia 9
Todos os residentes e funcionários são novamente testados e são detectadas quatro novas infecções em residentes. Há 18 casos confirmados.
Dia 13
Há dois novos casos em funcionários, num total de 20 casos.
Dias 17 e 18
São detectados dois novos casos em idosos residentes no lar (um em cada dia). São 22 os casos confirmados.
A partir desta data não surgiu mais nenhum caso. Entre os agregados familiares dos funcionários do lar também não surgiu nenhuma infecção porque, de acordo com as autoridades de saúde, fez-se isolamento profiláctico atempado, que foi cumprido pelos afectados.
Como se pode ter espalhado o vírus?
À data do primeiro caso deste surto, as visitas aos lares já não eram permitidas. Dada a vulnerabilidade dos mais idosos a esta doença, o Governo começou por suspender as visitas em todos os hospitais e lares de idosos do Norte no início de Março, medida que foi depois alargada a todo o país em meados desse mês. Em vários surtos em lares portugueses, tal como aconteceu com este estabelecimento em Lisboa, o primeiro caso foi detectado num funcionário. Os idosos só voltariam a receber visitas de familiares quase no fim de Maio, com regras muito apertadas.
Além de os quartos serem partilhados, existem vários espaços comuns neste lar em Lisboa, como asala de estar , acozinha, ascasas de banho e osrefeitórios, o que pode ter potenciado a transmissão. O edifício tem apenas um piso e não há elevadores.
Em todos os quartos e nos espaços comuns há ventilação natural e unidades de ar condicionado. Embora existam evidências de que a transmissão de gotículas possa ser motivada pela ventilação com ar condicionado, as autoridade de saúde não acreditam que esse facto tenha contribuído para o contágio entre utentes. Acreditam sim que a transmissão se deu através do contacto próximo com pessoas infectadas — a auxiliar de acção médica, neste caso.
Neste surto, 22 ( + ) pessoas ficaram infectadas (16 utentes e seis funcionários) e 77 tiveram que ficar em isolamento. Destas 77 pessoas, 31 são utentes ou funcionários do lar que ficaram em vigilância activa, mas que nunca desenvolveram a infecção.
Dos 30 residentes do lar, cuja média de idades é de 87 anos, 16 ficaram infectados — mais de 50% do universo dos residentes. A média de idades destes casos positivos foi de 89 anos.
Duas pessoas morreram neste surto – dois residentes do lar que estavam hospitalizados.
Dos 23 funcionários e assistentes do lar, seis ( + ) ficaram infectados. Cerca de 14 contactos próximos dos trabalhadores e dos utentes do lar tiveram de ficar em isolamento.
As circunstâncias e causas deste surto foram descritas ao PÚBLICO por um dos profissionais que o acompanhou de perto, o médico Vítor Veríssimo, do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa Central.
O médico aponta alguns razões para a disseminação do vírus neste lar, lembrando que este surto ocorreu “no início da actividade epidémica em Portugal”. “Poderá ter contribuído para a propagação da infecção a utilização irregular dos Equipamentos de Protecção Individual (EPI) e alguns momentos de descanso, como a partilha do horário de refeições entre os funcionários”, refere.
Vítor Veríssimo sublinha também que naquela altura a utilização de máscara era apenas recomendada aos doentes com sintomas sugestivos da covid-19. Ainda assim, depois da detecção do primeiro caso, o uso de máscara passou a ser obrigatório no lar.
Em Portugal, morreram 1047 idosos em lares com covid-19. No fim de Outubro, a ministra da Saúde revelou que já foram detectados casos de infecção em 107 lares em Portugal, um dado que representa 4% das mais de 2500 instituições do país. O PÚBLICO pediu informação actualizada sobre o número total de surtos em lares ao Ministério da Saúde, que revelou apenas existirem 149 surtos activos nas Estruturas Residenciais para Idosos. Nesta altura já serão mais os lares afectados por um ou mais casos de infecção desde Março.
FICHA TÉCNICA
Infografia: Francisco Lopes, Gabriela Gómez e José Alves Desenvolvimento web: Francisco Lopes José Alves Texto: Sofia Neves