Se “até tens amigos negros”, pergunta-lhes
Há agora uma geração de jovens negros e afrodescendentes em Portugal que não aceita reduzir-se — e ainda bem — à experiência colonial e exige apenas aquilo que lhes é devido: cidadania plena.
Começo por uma confissão desconfortável: até tenho amigos racistas. Você provavelmente também. Não ideólogos do racismo, que acordam, comem e respiram pensando como fomentar o ódio racial — esses, felizmente, são raros — mas vizinhos, conhecidos ou parentes que já vimos ter discurso ou atitude racista. Começando por dizer “Não sou racista, mas”. “Não tenho problemas com raça nenhuma, à exceção de.” “Eles também são racistas.” “Nós somos menos racistas do que.” E por aí afora. Vocês já ouviram, e eu já ouvi, racismo casual na rua, nas lojas, nos táxis e até nas universidades. É possível que se decidirem confrontar o facto, ouçam a resposta “racista, eu?! Eu até tenho amigos negros!”. Por isso comecei como comecei: talvez seja altura de deixar de usar os amigos negros como ás de trunfo para não se ser considerado racista, e começar a responder mais a quem evita admitir que o racismo é um problema pernicioso e permanente — e com impacto muito real e muito negativo sobre as vidas dos nossos concidadãos que não são brancos.
A tréplica poderia ser: tens amigos negros? Então pergunta-lhes. Em vez de te apressares a dar a tua resposta por eles, explicando do alto da tua experiência por que achas que em Portugal “não há racismo” ou que ele “não é estrutural” ou que é “uma pauta da esquerda politicamente correta”, inicia uma conversa. Tira tempo para ouvir, tempo para pensar, e depois pergunta outra vez. Talvez te surpreenda.
Que te responderão? Não faço ideia. Os negros e todos os seres de gloriosas cores que não são a maioria na nossa sociedade têm — pasme-se — opiniões e experiências muito diversas. Talvez te contem muitas histórias como me contaram a mim. Como o amigo que recebeu uma chamada telefónica involuntária do agente imobiliário com quem era suposto encontrar-se dali a cinco minutos e o ouviu partilhar com outra pessoa um chorrilho de insultos cruéis e humilhantes sobre os negros. A maioria de nós não teve de passar por esta experiência. Mas o meu amigo ouviu também outra coisa: que o agente imobiliário estava exasperado porque de qualquer forma era muito difícil arranjar quem arrendasse casas a negros. E o mesmo poderíamos dizer sobre empregos, e transportes, e empréstimos no banco e inúmeros outros aspectos que — há estudos e estatísticas que o provam — tingem de preconceito racial e prejudicam a vida dos nossos concidadãos, pelo mero facto de terem a pele de outra cor. E sem sequer termos começado a falar do Bairro da Jamaica ou da Cova da Moura — onde dei aulas — e do estigma e da violência e da guetização que desses bairros fazemos.
Como disse, as respostas são múltiplas. Já me aconteceu repetir perguntas sobre o racismo à mesma amiga e ouvir respostas diferentes com dez anos de diferença. Da mesma forma, as respostas tendem a ser diferentes dependendo das circunstâncias ou da geração de quem responde. E é aí que há agora uma diferença sensível que vale a pena salientar. Há agora uma geração de jovens negros e afrodescendentes em Portugal que não aceita reduzir-se — e ainda bem — à experiência colonial e exige apenas aquilo que lhes é devido: cidadania plena. E essa é uma excelente notícia, uma chamada à qual não podemos falhar.
Nos dias a seguir à questão da violência policial no bairro da Jamaica o que mais ouvi foi homens brancos e de meia idade a pontificarem sobre como há ou não há racismo em Portugal, e até sobre como os negros devem ou não ser anti-racistas. Acho ótimo — é aliás o meu caso neste preciso momento. Mas por que não temos negros e negras (como Joacine Katar Moreira, ou Inocência Mata, ou Djaimilia Pereira, ou Regina Queiroz, ou Solange Salvaterra, ou Beatriz Gomes Dias, ou Cristina Roldão, para citar só mulheres) com uma coluna permanente na imprensa, para escreverem não só sobre racismo mas sobre o que lhes der na gana? Se os negros estão na rua e nos nossos locais de trabalho, porque é que eles não estão nos jornais e nas televisões e na política? Em grande medida porque editores e líderes políticos se habituaram a pegar no telefone para ter opiniões de esquerda e de direita, do norte e do sul, e até do Benfica do Porto e do Sporting, mas acham que pegar no telefone para convidar um negro ou negra a escreverem ou virem ao programa ou serem candidatos nas eleições é “politicamente correto” (eu já peguei no telefone para fazer esses convites e não tenho vergonha de o dizer; é uma das coisas de que mais me orgulho na vida e tenciono fazer muito mais no futuro).
Cidadania plena é mais do que ter o cartão de cidadão. É não ter de se provar que se é cidadão para se ser tratado como tal. É ver que se é incluído na vida do país onde se faz vida. É não aceitar ser objeto de suspeição. É estar no espaço público com a mesma dignidade da presença de quaisquer outros. Não é apenas andar nas ruas das nossas maiores cidades e cada vez mais pelo país todo. É estar nas televisões, e nos jornais, e na política, e no parlamento. Abram-lhes as portas. Não para lhes “dar” lugar ou dar “voz” — mas para fazer justiça ao lugar e à voz a que eles já têm direito.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico