Dois patriarcas de Lisboa terão calado queixa sobre alegado abuso sexual por um padre

Caso será um dos que foram enviados à PJ, no seguimento do trabalho da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja. Dos que foram enviados para o Ministério Público, quatro já foram “arquivados”, revela Pedro Strecht

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D. Manuel Clemente justificou o silêncio com o facto de o denunciante não querer ver o caso divulgado Daniel Rocha

Um padre que nos anos 1990 tinha a seu cargo duas paróquias da zona norte do distrito de Lisboa é suspeito de ter abusado sexualmente de crianças. A denúncia, de pelo menos um destes casos, foi feita pela mãe de uma das alegadas vítimas, ainda nessa altura, ao então cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, e, mais recentemente, a D. Manuel Clemente, que exerce as mesmas funções. Em ambos os casos, não terá havido qualquer denúncia às autoridades civis nem um procedimento interno da Igreja.

O caso foi relatado esta terça-feira pelo Observador. Segundo a notícia, a mãe de um menino que, na altura dos alegados abusos teria 11 anos, terá suspeitado do que considerava ser a excessiva proximidade do padre com as crianças das suas paróquias. Alguns anos depois, as suspeitas da mulher terão sido confirmadas pelo filho, que lhe terá dito que o sacerdote teria abusado dele e de outros menores. Sem nunca denunciar o caso à polícia, a mulher pediu uma reunião com D. José Policarpo, da qual terá saído com a crença de que ele não acreditara nela. Segundo o jornal, seguiram-se vários outros contactos com a hierarquia do Patriarcado, mas sem qualquer efeito prático, além do facto de, já em 2002, o suspeito ter saído das paróquias em que trabalhava. Foram-lhe atribuídas funções numa capelania.

Nessa altura, ainda segundo o Observador, a mãe que fizera a denúncia voltou a reunir-se com D. José Policarpo, que lhe terá dito que o padre estava a ser submetido a um tratamento. O jornal questionou o Patriarcado de Lisboa sobre esta questão, mas não obteve qualquer confirmação, embora o gabinete de comunicação de D. Manuel Clemente tenha confirmado que o Patriarcado recebera “no final da década de 1990, uma queixa contra o padre […] por alegados abusos sexuais”. Na altura, diz o Patriarcado, “foram tomadas decisões tendo em conta as recomendações civis e canónicas vigentes.”

A criação de uma comissão de protecção de menores, pelo Patriarcado de Lisboa, em Abril de 2019, terá sido a razão para que o caso voltasse a ser discutido. O diário online afirma que foi nessa altura que a mesma mulher, que cerca de trinta anos antes denunciara o caso a D. José Policarpo, convenceu o filho, agora adulto, a contar o que lhe acontecera a D. Manuel Clemente. A reunião aconteceu, entretanto, em data que não é divulgada, mas, aparentemente, sem que nada tenha sido feito em relação ao caso. “O actual Patriarca encontrou-se com a vítima, que não quis divulgar o caso, mas sim que não se voltasse a repetir. Até este momento, o Patriarcado de Lisboa desconhece qualquer outra queixa ou observação de desapreço sobre este sacerdote”, esclareceu o gabinete de comunicação de D. Manuel Clemente.

O Patriarcado afirma também, em nota enviada ao PÚBLICO, que o padre em questão está, actualmente, hospitalizado e já não exerce quaisquer funções “no centro hospitalar onde trabalhava”. Depois de ter sido afastado das paróquias, em 2002, o sacerdote terá criado uma associação privada e não-canónica, que ainda existe e tem como função acolher famílias, crianças, jovens e idosos num grupo cristão.

O caso do sacerdote será um dos sete que foram enviados à Polícia Judiciária, entre os que estão a ser recolhidos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI)​, que entrou em funções em Janeiro deste ano. Contudo, a terem existido crimes, estes já prescreveram, e da descrição enviada às autoridades civis não constará sequer o nome da vítima ou qualquer outro caso relacionado com o mesmo suspeito, adianta o jornal.

A Igreja Católica anda, há décadas, a braços com diversos escândalos relacionados com abusos sexuais de menores, por parte de sacerdotes, e a forma como estes foram sendo sempre escondidos por parte da hierarquia. Em Fevereiro de 2019, o Papa Francisco encabeçou uma cimeira com bispos de todo o mundo em Roma, em que ficou decidido que todas as dioceses teriam de criar uma comissão de protecção de menores, até ao Verão de 2020. Um manual detalhado sobre como os bispos deveriam agir em caso de suspeitas de abuso foi, entretanto, publicado pelo Vaticano, instando-os a levar todas as denúncias à polícia, excepto as que fossem ouvidas em confissão.

Por cá, os dados mais recentes divulgados pela comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, dão conta que, em Julho, esta já tinha validado 352 depoimentos sobre alegados abusos. Destes, 17 casos que ainda não tinham prescrito seguiram para o Ministério Público. Mas entre as denúncias havia também casos tão antigos como a década de 1950.

Quatro denúncias à comissão arquivadas pelo MP

Ao Observador, Pedro Strecht recusou-se a comentar o caso vindo agora a público e que aponta para um suposto incumprimento de D. Manuel Clemente das próprias regras definidas pelo Vaticano para lidar com casos de suspeita de abuso. Mas, já esta quarta-feira, em nome da CIEAMI, o pedopsiquiatra fez chegar às redacções um comunicado em que dá conta que esta “não revela nomes de alegados abusadores, de vítimas que pedem o anonimato e/ou possíveis locais de ocorrência de tais actos”. Essas informações serão, contudo, prestadas, “no final do trabalho” ao Ministério Público e à Conferência Episcopal Portuguesa, revela.

Pedro Strecht garante ainda que todos os depoimentos que “configurem possíveis situações não prescritas pela Lei Portuguesa” serão enviados para o Ministério Público e a Polícia Judiciária, mas neste último caso, apenas “quando exista já nesta instância queixa anteriormente reportada”. Sobre as situações enviadas para o MP, o coordenador da comissão acrescenta ainda que “neste momento, quatro já fora consideradas ‘arquivadas’”.

A comissão, diz ainda Pedro Strecht, continuará “atenta” a testemunhos que lhes cheguem, mesmo que estejam em causa factos já prescritos, tendo em conta que podem configurar “a possibilidade de prossecução do mesmo tempo de situação prevista por lei como ‘abuso sexual de menores’”.

Depois de o caso ter sido tornado público, esta quarta-feira, o Patriarcado de Lisboa reiterou as informações que já dera ao Observador, acrescentando que “está totalmente disponível para colaborar com as autoridades competentes, tendo sempre como prioridade o apuramento da verdade e o acompanhamento das vítimas”. Na mesma nota, o Patriarcado refere ainda que “a Comissão Diocesana de Protecção de Menores não recebeu qualquer denúncia ou comunicação sobre o caso”. Ou seja, D. Manuel Clemente não só não fez qualquer comunicação às autoridades civis como também não terá comunicado o caso à comissão que ele mesmo decidiu criar, em Abril de 2019, depois das orientações do Papa Francisco.

O abuso sexual de menores é um crime público em Portugal, o que significa que para que exista uma investigação não é necessária uma denúncia formal, basta que as autoridades tomem conhecimento dele. Contudo, os funcionários públicos e entidades policiais estão obrigados por lei a denunciar os crimes de que tenham conhecimento. D. Manuel Clemente não está, contudo, abrangido por qualquer uma destas designações, pelo que, ao não dar seguimento ao caso de que teve conhecimento, não estará a incorrer em qualquer acto punível por lei.​

Notícia actualizada com nota do Patriarcado de Lisboa e comunicado da Comissão Independente.

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