É pouco provável que a Globo queira criar uma televisão em Portugal

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Rui Soares

Empresa brasileira quer produzir conteúdos, mas deixa em aberto a co-produção de telenovelas com a SIC. Inaugura hoje a sede da TV Globo Europa, em Lisboa

A sede da TV Globo Europa vai ser inaugurada hoje em Lisboa, com a presença de várias estrelas da estação, como Lima Duarte ou Susana Vieira. O homem por trás desse projecto é Ricardo Pereira, 60 anos, o director da TV Globo Portugal. Jornalista, trabalha na Europa desde 1980. Foi correspondente da TV Globo em Londres, cobriu conflitos no Líbano, Israel, Síria, na Irlanda do Norte e nas Malvinas. Foi o único jornalista não americano a entrevistar Saddam Hussein no Iraque, em 1981. Viveu mais de duas décadas em Itália, onde foi director da televisão TeleMontecarlo. Antes da entrevista, mostrou ao PÚBLICO as instalações da TV Globo Europa, na Av. Fontes Pereira de Melo em Lisboa. Um espaço de 440 metros quadrados que pode receber eventos públicos, workshops e tem um estúdio. Num local que foi antes do Banco do Brasil e no edifício onde já esteve a embaixada do Brasil. "Não é para ser uma coisa fechada de brasileiros. Isso aqui vai ser uma casa portuguesa, com certeza", diz.

Portugal foi escolhido para sede da TV Globo Europa por causa das afinidades entre os dois países ou há outra explicação?

Já devíamos ter uma presença física aqui que fosse compatível com a importância da TV Globo no cenário televisivo português. Devíamos ter chegado há 35 anos com a Gabriela [a primeira novela da Globo a ser exibida em Portugal]. Claro que essa afinidade linguística é importante - somos o maior produtor de conteúdos culturais em língua portuguesa. Fazia sentido que estivéssemos na capital da língua, a nossa capital natural da Europa era Portugal. Vimos construindo essa sede desde 2007, quando a TV Globo abriu aqui um canal com a marca TV Globo. Antes era o GNT. O outro canal que temos é a Globo Internacional, que é feito para os emigrantes. Em Angola temos cerca de 200 mil assinantes e em Portugal, hoje, por causa da crise temos 42 mil assinantes [eram 45 mil]. Todos os canais Premium estão pagando por causa da crise.

Hoje em dia, a Globo quer mostrar que não é só uma vendedora de novelas. Mas em Portugal é por isso que é conhecida...

É verdade. Estou fascinado com uma coincidência que acontece hoje. Poucas horas depois da inauguração da nossa sede, estreia no Rio de Janeiro uma novela chamada Aquele Beijo, escrita pelo Miguel Falabella. O actor principal é meu homónimo, o Ricardo Pereira português. O fantástico é o seguinte: Ricardo Pereira não está fazendo um papel de um português nessa novela e isso nunca aconteceu no passado. Ele é o primeiro exemplo de um actor brasileiro ou português que está indo de um país para o outro e está fazendo um papel na língua do outro. E Rui Vilhena [argumentista português] está lá escrevendo novela na Globo. Isso é uma coisa importante. Vamos refazer o Dancin" Days no ano que vem com a SIC. É o primeiro caso também de um velho texto da Globo que vai ser totalmente refeito: não é adaptado. O Pedro Lopes, da SIC, vai reescrever conversando com Gilberto Braga [que escreveu o original]. Vai criar novos personagens, vai actualizar. Acreditamos que é uma novela muito interessante.

É a segunda co-produção com a SIC depois de Laços de Sangue. Haverá a possibilidade de Dancin" Days também passar no Brasil?

É muito pouco provável. Estamos a produzir aqui porque reconhecemos que cada vez mais as coisas têm que ter a cor local, têm que ser faladas na língua. Tem que ser uma história portuguesa. Laços de Sangue pode ser considerado um primeiro bom resultado dessa parceria. O ano passado assinámos um acordo de co-produção para duas novelas: uma novela original portuguesa a que um guionista da Globo daria uma supervisão. É o caso de Laços de Sangue com o Aguinaldo Silva. A segunda, e também para experimentar, era que um texto da Globo fosse refeito aqui e vai ser o Dancin" Days. Isso não significa que não se vai fazer mais. Resolvemos ver qual dos dois funciona melhor.

Está em aberto?

O resultado do Laços de Sangue indica que é um caminho sem volta. Cada vez mais a nossa presença aqui polariza, catalisa esse tipo de coisa.

E como está o projecto de a Globo e da SIC criarem uma produtora conjunta?

Segundo sei os accionistas da Globo e da SIC deram instruções às duas empresas para estudarem a criação de uma terceira empresa conjunta. Eu acho que são duas coisas que marcham em paralelo. Para co-produzirmos o Dancin" Days e o que vier no futuro não é obrigatório que a gente tenha uma marca nova.

Faria sentido para a Globo neste momento ter uma participação num canal com as características da SIC?

Não sei responder, porque é uma questão de negócios. A Globo já foi sócia da SIC, deixou de sê-lo, tem uma relação que nunca esteve tão boa e a parceria entre a família Balsemão e a família Marinho é conhecida. Acho pouco provável que a Globo se viesse a interessar por qualquer coisa em Portugal nesse momento.

Produzem o Cá Estamos. Pensam vir a produzir outros programas nessa linha?

Pensamos neste tipo de formato que é o tipo de programa entre informação e light entertainment. Vamos fazer dois programas, no próximo ano, que já estão na minha cabeça. E vamos fazer com portugueses. As produtoras e os apresentadores vão ser portugueses.

Esta versão portuguesa do Dancin" Days é mais um exemplo de um remake de novelas antigas como O Astro, a Guerra dos Sexos, a Gabriela. Como explica esta moda?

Gabriela vai começar a ser escrita e o que se sabe é que não vai ter nada a ver com aquela Gabriela. O bom Steve Jobs, que Deus o tenha, é um pouco responsável por tudo isso. O consumo de conteúdos de vídeo hoje permite que você veja o passado. O remake da novela faz muito sentido.

Mas a novela é mais efémera e está ligada a épocas. É difícil imaginar Dancin" Days fora daquele contexto.

Isso é para nós que vivemos aquele contexto. Provavelmente a novela que se vai fazer em Portugal vai fazer uma parceria com uma discoteca. A novela original chamava-se assim porque era o nome da discoteca de Nelson Motta: o Frenetic Dancin" Days.

Para a festa de inauguração convidaram actores mais antigos das novelas porque são aqueles que os portugueses gostam mais?

É verdade. Lima Duarte já não vem a Portugal há muitos anos. Também virão à festa Tony Ramos, Susana Vieira e Glória Pires. O presidente das Organizações Globo, Roberto Irineu Marinho, e o director-geral da TV Globo, Octávio Florisbal, também estarão cá.

Vive na Europa desde 1980. O que distingue a televisão brasileira da europeia?

Na Itália, as televisões públicas sempre foram vistas como instrumentos de comunicação dos governos e instrumentos de diversão de segunda classe. A inteligentzia olhava para a televisão com muito desprezo.

No Brasil era diferente?

No Brasil se juntam as coisas. Mesmo os grandes actores de teatro foram para a televisão e o teatro passou a andar a reboque. Mas a grande diferença com a Europa é a génese. A televisão aqui nasceu como uma coisa do Estado e quando teve que competir com a televisão privada foi competir com o pior para ter audiências.

O país está a discutir a privatização da RTP. Um país europeu como Portugal pode ter um serviço público como o brasileiro?

Era o que eu ia perguntar para vocês porque eu não sei nada de Portugal [risos].

A Globo comprou uma televisão italiana, a TeleMontecarlo nos anos de 1980. O que é que guarda dessa época em que foi director da TeleMontecarlo?

Que Maquiavel era italiano (gargalhadas). Guardo a minha mulher italiana, os meus dois filhos italianos [é pai de quatro], guardo um país. A Globo foi para a Itália achando que podia [resultar], porque as novelas eram muito bem vistas, agora foi mais difícil do que se pensava. Era um país que tem a Máfia, a Igreja Católica e tinha o maior partido comunista do Ocidente. Foi complicado.

Há quem diga que a Itália é o que é hoje por causa da televisão de Berlusconi. Concorda?

Concordo. O efeito de Berlusconi, no tecido social não é bom. Berlusconi fez mal à Itália. Claro que ele foi eleito, a Itália é um pouco masoquista nessa coisa. O país perdeu e vai demorar para se recompor. Maquiavel era melhor do que ele em todos os sentidos.

Como jornalista tem um percurso longo no Médio Oriente.

Quando fui para Londres, essa capital era o nosso escritório central e dali viajávamos em reportagem para a Europa inteira e para o Oriente Médio. Quando Israel bombardeou os reactores nucleares fomos para Bagdad e conseguimos ser a primeira e a única televisão a entrevistar Saddam Hussein. Fiquei lá dias, à espera, até que ele se dignou a dar a entrevista. Foi feita em árabe, entendia inglês mas comigo só falou em árabe. Tinha duas equipas dele gravando o que nós gravámos e só nos deixaram sair do palácio depois de terem revisto tudo.

O que ficou desse momento?

Ele disse coisas naquela época que hoje têm actualidade: "Alguém tem de me explicar por que é que Israel pode ter a bomba atómica e eu não posso?" ou "Por que é que o equilíbrio nos países árabes não reconhece a Palestina?" Saddam já estava querendo assumir um papel que depois assumiu de querer ser o grande líder. Embora nessa época fosse extremamente laico. Essa e uma outra entrevista a Lech Walesa são as que mais lembro. Fui entrevistá-lo em 1980, em Gdansk [Polónia]. Foi uma época muito importante para o jornalismo na Europa.

Tenho que tomar cuidado para não ficar um "quandista", como diz a minha filha, "quando aconteceu isto", "quando eu fiz aquilo"... As pessoas começam a sair de perto e não aguentam mais essa história. Mas tenho algumas histórias boas.

Tem seguido as Primaveras Árabes. Que impressão tem sobre esse processo?

Vejo as Primaveras Árabes como vejo a crise do euro na Europa. Ainda não conseguimos encontrar um modo de descodificar a informação a nível mundial, de raciocinar à velocidade que as mensagens são transmitidas hoje. A televisão mostra que há uma guerra na Líbia, mas não sabemos nada daquela guerra da Líbia. Ouvimos o que dizem, parece que há muita informaçã,o mas não sabemos descodificar. Tenho amigos que trabalharam no Afeganistão com a ONU e que conhecem bem o país. A ideia de que um modelo nosso possa funcionar num país tribal, totalmente diferente, só porque eles usam o mesmo iPhone, falamos a mesma língua e postam num blogue... É bem mais complicado.

Regressando ao Brasil. Existem diferenças entre o país de Lula e o de Dilma?

Estou fora do Brasil há 30 anos. O que leio dos noticiários é que são estilos totalmente diferentes. Mesmo os críticos mais ferozes de Dilma ou da sua inexperiência têm-se calado e têm mudado de ideias. O Brasil não é o Brasil da Dilma, como não foi o Lula que transformou o Brasil porque antes esteve Fernando Henrique Cardoso. E na história se não tivesse acontecido tudo o que aconteceu antes, também não teria tido tudo o que aconteceu.

Esta expansão da TV Globo é uma forma de afirmação do Brasil ou é a estratégia de uma empresa privada?

As coisas se confundem. Faz muito tempo que a Globo reflecte o Brasil. Ela está ajudando o Brasil a tornar-se o que é e a Globo está junto.

A televisão desempenha um papel importante na afirmação da língua portuguesa?

Nunca tinha pensado nisso até começar a vir a Portugal frequentemente. Acho que o Brasil não vê a língua como fonte de orgulho ou de importância como Portugal a vê. É claro que essa importância não vai permitir infelizmente que se juntem - Brasil, Angola, Moçambique - e se tenha um outro grupo económico forte ou a nossa língua vista como um todo, não. Agora ela é muito importante para nós e cada vez mais, já que a Internet resgatou a importância da língua escrita.

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