Corvo, a ilha em que já foram todos vacinados contra a covid-19. “Foi o melhor que nos aconteceu”

A mais pequena ilha dos Açores é o primeiro território do país cujos habitantes já receberam a primeira dose da vacina contra a covid-19. Em três dias foram vacinadas 306 pessoas. Em Março recebem a segunda dose.

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Rui Soares

Quando a estrada inclinada e agreste começa a afunilar para chegar à panorâmica da Lagoa do Caldeirão, no Corvo, o guia turístico Fernando Câmara, de 67 anos, pede aos visitantes para fecharem os olhos. Estacionada a carrinha no local seleccionado, dá depois a ordem: “já pode abrir”. E o visitante tem diante de si a paisagem imersiva de um dos monumentos naturais mais emblemáticos do arquipélago.

O ritual é conhecido por aqueles que visitam a ilha, mas já faz uns meses desde a última vez que o responsável pela Corvo Tours levou turistas ao Caldeirão. Consequência da inevitável pandemia da covid-19 que paralisou o mundo. Mas agora, na mais pequena ilha açoriana, o tempo é de esperança. Tantas vezes remetido ao esquecimento, constantemente prejudicado por uma insularidade mais agreste de que em qualquer outro lugar, o Corvo tem, desta vez, motivos para sorrir: é a primeira região do país a ter todos os seus habitantes já com a primeira dose da vacina. Em Março recebem a segunda.

Entre quarta e sexta-feira praticamente toda a população da ilha mais pequena dos Açores recebeu a primeira dose da vacina contra a covid-19. “Foi uma alegria”, diz Fernando Câmara, que foi vacinado na quinta-feira, explicando que aquando da vacinação recebeu um “cartãozinho” a informar que a segunda dose seria a 11 de Março. O corvino considera “importante” a decisão de vacinar toda a ilha, uma vez que os recursos são escassos. “A gente às vezes andava com o coração na mão. Isso era uma necessidade para a ilha, porque a ilha não tem médicos, não tem nada”.

De quarta a sexta-feira foram vacinadas 306 pessoas, mas o número ainda deve chegar às 310 nos próximos dias, uma vez que quatro corvinos estavam fora da ilha e não conseguiram aterrar no dia previsto devido ao estado do tempo. Representam 92% da população vacinável da ilha, que, segundo os dados do último Censos em 2011, tem 435 habitantes. As restantes pessoas não foram vacinadas por opção.

Mas a decisão de vacinar toda a população do Corvo, independentemente das idades ou critérios clínicos, não constava do plano regional de vacinação original. “Este processo de vacinação tem tantas particularidades que não tínhamos previsto a questão concreta do Corvo com esse grau de pormenor”, assume ao PÚBLICO Berto Cabral, director regional da Saúde, apontado três motivos para vacinar toda a ilha.

O primeiro prende-se com o número reduzido de vacinas necessárias para vacinar a população. O segundo está relacionado com a “logística complexa associada”, que teria de ser posta em prática várias vezes ao longo dos próximos meses e que, muito provavelmente, iria ser condicionada pelas condições meteorológicas. “Olhe, eu próprio sou exemplo isso”, atira o director regional que quando falou com o PÚBLICO já deveria ter abandonado a ilha não tivesse o seu voo sido cancelado devido ao mau tempo. Terceiro motivo, e talvez o “mais forte”, os parcos recursos de saúde. “A ilha tem um médico e dois enfermeiros e não tem camas de internamento”.

Só com um caso detectado

A mudança no plano de vacinação foi feita após ter sido detectado o primeiro caso de covid-19 no Corvo, a 23 de Janeiro. Foi o primeiro e único caso da ilha - que, entretanto, já não tem qualquer infectado - e serviu para chamar a atenção das consequências dramáticas que poderia ter um surto de covid-19 naquela ilha do grupo Ocidental.  

Ainda assim, Ana Fonseca, de 33 anos, frisa que na altura a população encarou a situação com “bastante calma”: “o facto de ser um meio pequeno tornou mais fácil identificar o trajecto da pessoa”. A funcionária do único hotel da ilha, o Comodoro, chegou há oito meses ao Corvo vinda do continente. Recebeu a vacina na quinta-feira. “Se me mantivesse no continente seria muito difícil ter acesso à vacina tão rapidamente”, afirma, acrescentando que todo o processo “estava muito bem organizado”.

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Rui Soares

Opinião corroborada pelo director regional da Saúde que elogia a unidade de saúde de ilha pela organização do processo de vacinação. “Existia uma lista com os horários de vacinação, as pessoas deslocavam-se à hora marcada ao pavilhão e já tinham a vacina preparada”, explica Berto Cabral.

Mauro Ferreira foi uma dessas pessoas. Foi vacinado logo no primeiro dia, na quarta-feira. Assume que sentia “alguma apreensão” – “será segura ou não?” – mas, “pesando os pratos na balança”, não teve dúvidas em ser vacinado. Mauro, faialense, de 34 anos, trabalha no restaurante Caldeirão e diz compreender que possam existir opiniões divergentes quanto à decisão de vacinar toda a ilha. Até dá o exemplo da mãe, que vive no Faial, e que “em teoria seria prioritária” em relação ao filho para receber a vacina. Mas é preciso “perceber a realidade da ilha”. “Olhando para a saúde na ilha do Corvo a gente percebe bem que isso foi a melhor coisa que nos aconteceu”.

Para Marco Silva, a decisão de tornar o Corvo a ilha vacinada foi uma “benesse”. “Notei muita felicidade por parte de todas as pessoas”, assinala o comandante dos Bombeiros Voluntários do Corvo, que foi vacinado logo na quarta-feira, juntamente com todos os operacionais do quartel. Para o bombeiro, “faz todo o sentido” vacinar toda a população do Corvo, porque “os cuidados médicos são reduzidos” e porque o Inverno costuma a ser agreste: “as condições atmosféricas tiram-nos muitas coisas”.

Numa ilha com apenas um concelho, Vila do Corvo, o município mais pequeno do país com 17,13 km², toda a população cruza-se todos os dias “directa ou indirectamente”. “Basta dizer que só temos uma padaria, é obrigatório praticamente cada pessoa de cada casa ir à padaria comprar pão”.

Por isso, um surto de covid-19 na ilha poderia ter “consequências, muito, muito graves”. Mas isso agora são inquietações do passado neste reduto no meio do Atlântico. Uma ilha que serve como símbolo de esperança. “Um contágio aqui era como uma bomba relógio com um rastilho muito curto. Bem bom que agora temos menos uma coisa para nos preocupar”.

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