Os jovens nunca falaram tanto de saúde mental — mas e o suicídio? “O problema não é falar dele, é saber como se fala”
Numa geração sem medo de falar sobre os problemas de saúde mental, será que já se encontrou um espaço para se falar do suicídio? No rescaldo da campanha Setembro Amarelo, mês de prevenção do suicídio, assinala-se este sábado o Dia Mundial da Saúde Mental, que este ano tem como tema “Saúde Mental para Todos: Maior Investimento, Mais Acesso”.
Há mais de dez anos que Inês Retorta, actualmente com 28 anos, luta contra uma depressão. Oficialmente, o diagnóstico chegou-lhe aos 15 anos, numa idade em que, como reconhece, não tinha “noção de que estava mal e que tinha de pedir ajuda”. O apoio chegou e foi precioso anos mais tarde. No caso de Diana Pereira, 24 anos, foi diferente: já estava na faculdade quando a depressão entrou de mansinho na sua vida e a tomou por completo. Também ela tomou a iniciativa de parar com o ciclo vicioso e procurar ajuda – o que freou a ideação suicida.
Não é incomum que a ideação (ou seja, os pensamentos suicidas) e o suicídio, um comportamento multifacetado causado por vários factores (e nunca um só), surjam de braço dado com a depressão. Foi o que aconteceu a Inês e Diana e não são as únicas. “A grande maioria dos jovens que se suicidou ou que fez tentativas de suicídio são jovens que sofrem de depressão”, afirma Daniel Sampaio, psiquiatra com trabalho dedicado ao suicídio entre os jovens.
O problema, para este especialista, é que “a depressão é uma doença que muitas vezes passa despercebida, sobretudo na adolescência”. “Enquanto um adulto diz que está triste e chora, habitualmente é mais difícil a um jovem confidenciar a sua tristeza e o seu mal-estar. Muitas vezes, aparece sob a forma de ingestão de álcool, sob a forma de isolamento, perturbação do sono... sinais mais indirectos aos quais temos de estar atentos para poder actuar.”
Em termos globais, o suicídio é a segunda causa de morte entre os jovens entre os 15 e os 29 anos (apenas superada pelos acidentes rodoviários), de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2018, segundo os últimos dados disponíveis no Instituto Nacional de Estatística, registaram-se 27 mortes por suicídio na faixa etária entre os 15 e os 24 anos em Portugal, de entre as 989 mortes por suicídio que foram registadas em todas as idades. “Os dados mostram que em Portugal não houve aumento do suicídio em jovens nos últimos anos”, realça o especialista, que alerta, no entanto, para o aumento de comportamentos autolesivos.
“O silêncio não me valia de nada”
Inês Retorta conhece de perto ambas as realidades. A primeira vez que conviveu com elas tinha apenas 15 anos. Estava a lidar com problemas de auto-estima e as situações de bullying na escola só ajudaram a tornar seu o fardo ainda mais pesado.
O piorar da situação fez com que falasse com familiares e professores e recebesse cuidados de saúde. Um percurso que não foi livre de altos e baixos porque, como explica, “numa primeira fase” não sabia “reconhecer que precisava de ajuda”. “Não sei se por uma questão de idade ou da doença”, diz. Desde então que é medicada e acompanhada por um psicólogo. O que não a livrou de uma recaída, anos mais tarde, quando já estava na faculdade – a pressão académica apertou e os pensamentos suicidas voltaram. “Voltei a ter aquele sentimento de impotência e inutilidade, de querer ultrapassar e não conseguir. É uma luta constante contra a minha própria cabeça. E isso por si só já deixa tudo mais difícil.”
Mas desta vez Inês já tinha mais armas para lhes fazer frente. “Talvez por ser uma coisa que já tinha acontecido, consegui reconhecer determinados sinais e perder o medo e a vergonha, chegar-me à frente e pedir ajuda”, confessa.
A jovem fala com o distanciamento que o tempo de recuperação lhe proporciona. Não pretende ser uma história anónima. “Eu percebi que o silêncio não me valia de nada, porque as piores crises que tive foram em alturas em que ninguém sabia de nada”, conta. Por isso fala sobre o assunto sem tabus. “Dando o meu testemunho, quero que as pessoas entendam que isto não dura para sempre. Pode até haver um diagnóstico, mas eu não sou a minha doença. Há mais Inês do que a depressão. É só uma parte de mim.”
Uma “sensação de vida perdida” — que é evitável
“O suicídio na juventude é algo que nos choca porque há sempre uma sensação de vida perdida numa idade precoce”, diz David Neto, presidente do conselho de especialidade de psicologia clínica e da saúde da Ordem dos Psicólogos. Para este psicólogo, há vários factores que podem explicar este comportamento: aos sentimentos como a desesperança, que são transversais a vários grupos etários, juntam-se outros que são próprios da idade, como “uma certa dificuldade no controlo dos impulsos”.
“Ou seja, pode haver situações em que a pessoa está numa situação de sofrimento que é aguda, que é decorrente de uma separação, de uma situação de humilhação, e que por causa desta dificuldade em controlar os impulsos se pode traduzir numa tentativa de suicídio”, ilustra. Os consumos de droga ou de álcool também podem contribuir para este desfecho.
Fausto Amaro, sociólogo e presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia – grupo que estuda as causas do suicídio e as formas de prevenção – acredita que “o jovem não quer morrer, é um erro pensar nisso”. “O jovem não vê outra alternativa – um número de telefone para o qual pode ligar, um amigo com quem desabafar. Isso são alternativas verdadeiras.” E aqui está a palavra-chave: falar.
Há factores sociais que permitem evitar o suicídio nos jovens, como “um grupo de amigos que apoia, uma família, um professor que diz a palavra certa no momento certo”. E, claro, os programas de prevenção nas escolas. “Os professores, auxiliares, jovens devem estar conscientes e saber algumas coisas, por exemplo, que é mito que quem fala muito em suicídio não se suicida.”
O mesmo defende Daniel Sampaio: “Nas escolas perdeu-se muito o que antigamente se chamava a educação para a saúde”. Actualmente, isso “não existe” e muitos jovens em risco ficam por identificar ou acompanhar. Para mudar esta realidade, é preciso aumentar a literacia em saúde mental junto dos professores e envolver os estudantes interessados no tema – “porque os há sempre” – para que sirvam como “estudantes sentinela” e façam a ponte entre os colegas e os professores, porque é sempre mais fácil falar com alguém que é igual a nós.
O Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, com um programa de acção junto dos jovens, esteve demasiados anos na “gaveta”. Tinha a duração de 2013 a 2017 e é “um óptimo plano, muitíssimo bem feito”, considera Ana Matos Pires, assessora do Programa Nacional para a Saúde Mental. “Mas com todas as questões político-económicas e, sendo sempre a saúde mental o parente pobre da saúde, o que aconteceu foi que o plano não saiu da gaveta.”
Só em 2019 (ano em que o tema do Dia Mundial da Saúde Mental, decidido pela OMS, foi a prevenção do suicídio) é que o plano foi colocado em prática e “não se vai conseguir recuperar todo o tempo perdido”, lamenta a psiquiatra. Mas já se começam a ver os primeiros passos, como a campanha nacional contra o suicídio, lançada em Setembro.
O ponto de viragem
Foi em 2017 que Diana Pereira, actualmente com 24 anos e no último ano do curso de Medicina, percebeu que alguma coisa não estava bem. Estava no quarto ano do curso e tentava conciliar as aulas com um part-time. Até que um dia lhe pareceu que tudo estava a ser demais.
“Atolava-me de trabalho porque não queria pensar nos meus problemas”, conta, referindo o fim de uma relação e afastamento de amigos. “E comecei a perceber que não estava nada bem porque já não queria sair de casa, não tinha vontade de falar com as pessoas. Não tinha prazer em fazer nada do que antes gostava”, recorda.
A gota de água foi um episódio que, se estivesse bem, seria facilmente resolvido. Mas não estava. Nesta altura, já tinha dificuldades em dormir, ideação suicida e não era capaz de “desabafar com ninguém”. “A caminho do estágio esqueci-me da bata e só reparei quando cheguei ao hospital. Comecei a chorar. Só pensei que este era o limite.”
Voltou para a casa que arrendava – não para ir buscar a bata, mas para fazer as malas e voltar ao Porto, procurando ajuda junto da família. Congelou a matrícula e passou o ano a restabelecer-se. Por dificuldades financeiras só pode recorrer ao Serviço Nacional de Saúde. E aponta algumas críticas à forma como foi seguida: “Quando cheguei ao médico da consulta aberta contei-lhe a história toda e ele percebeu que eu estava deprimida, com alguma ansiedade e pensamentos suicidas. Receitou-me um antidepressivo para um mês.” A atitude deixou-a “um bocado chocada” porque não foi encaminhada para nenhum especialista em saúde mental.
“Eu sabia que me sentia mal, mas tinha esperança que [com o antidepressivo] me pudesse sentir melhor.” E melhorou. A pulso, porque muito do que sabe hoje sobre a própria mente foi uma mistura do que aprendeu no curso e do que procurou de forma autodidacta, uma vez que não conseguia pagar pela psicoterapia no privado. E como nem todos poderão saber fazer o mesmo, Diana deixa o alerta: “Muita gente discrimina a questão do psicólogo não sabendo que é tão ou mais importante do que a medicação.” E realça: “As doenças mentais são tão graves quanto as físicas e às vezes até causam mais transtorno. Temos de chegar até aos jovens e ajudá-los a procurar ajuda antes que eles procurem esta solução permanente para um problema passageiro.”
Um projecto para ser o “ombro amigo” que não se teve
É aqui que as histórias de Diana e Inês se cruzam. Depois de um ano de interregno, Diana voltou à faculdade. O processo de recuperação trouxe-lhe muito “conhecimento não médico” que, aliado ao que aprendeu no curso, lhe deu material para criar uma página de Instagram sobre a saúde mental, a Pineapple Mind. Arrancou com materiais informativos aos quais se foram juntando os testemunhos que algumas pessoas, de forma voluntária, enviavam para página. E começou a crescer.
“Entrámos em estado de emergência e eu recebi muitas mensagens de muita gente com dúvidas, ansiosas, não sabiam o que isto era”, recorda. Às tantas, chegou a ter cerca de 30 pessoas a mandar-lhe mensagens todos os dias. E Diana sentia que tinha de ajudar, mas não conseguia chegar a todos. Por isso, chamou reforços e deu o passo seguinte.
“Por causa da tese, já tinha andado a pesquisar sobre comunidades integradas de saúde mental, que se fazem muito no Reino Unido, e visam a criação de projectos de apoio de pares”, recorda Diana. Pareceu-lhe o momento certo para avançar e tentar implementar o mesmo em Portugal. Assim nasceu o projecto Pineapple Friends e a página do Instagram materializou-se numa associação, à qual Inês Retorta se juntou, num momento em que se sente estável e decidiu que “queria ajudar”: “Para que outras pessoas não se sentissem tão mal quanto me senti a dada altura da vida. Gostava de ser esse ombro amigo para alguém”, justifica.
Grupos como estes são o lado virtuoso das redes sociais, elogia o psicólogo David Neto. Nas redes, “o facto de a pessoa ter mais sítios onde se espelhar pode fazer com que tenha mais apoio” e a existência de grupos online “de pessoas ligadas à saúde mental” é também importante na óptica da prevenção. “Há muita coisa má a correr nas redes sociais”, que podem servir de espaço para o cyberbullying, “mas também algumas coisas boas.”
Contrariando a forma efabulada e romanceada como o assunto tem sido apresentado na cultura pop, a geração mais jovem está cada vez mais a colocar o assunto da saúde mental em discussão. E bem. “Antigamente pensava-se que falar destes problemas com os jovens era chamar a atenção e incentivá-los. É errado. Temos que falar”, diz Fausto Amaro. “O pai das teorias do suicídio é Émile Durkheim e já ele dizia que o problema não é falar do suicídio, é saber como se fala.”