Igreja portuguesa cria comissão para fazer “triagem” de denúncia de abusos sexuais
Desde a cimeira de Fevereiro, no Vaticano, que o cardeal-patriarca de Lisboa tem estado a trabalhar de modo a que haja “uma plataforma” que reúna o clero mas também personalidades da Justiça. Anúncio formal será feito em breve.
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Ordenado bispo no último domingo, Américo Aguiar foi nomeado pelo Papa para o lugar de auxiliar do cardeal-patriarca de Lisboa. Em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, que pode ouvir nesta quinta-feira às 13h, revela como a diocese vai enfrentar o problema dos abusos sexuais, seguindo o exemplo do Papa Francisco.
Nos últimos anos a Igreja parece pouco conseguir falar sobre a questão dos abusos sexuais. Mas em Portugal, são poucos os casos conhecidos. Como explica isso?
Prefiro dizer que um caso são muitíssimos. Dois é pior. Dez é horrível e daí para cima... Não sei se há mais ou se não há mais.
Se soubéssemos, devíamos dizer e tratar como o Papa quer, a Igreja recomenda e a humanidade exige. Sempre que surgem essas notícias, sinto que as pessoas me fulminam com os olhos. E dói-me. Mas Nosso Senhor não disse que isto ia ser fácil. Agora, não se pode permitir que nenhum colega meu tenha uma vida dupla.
Quando há um caso de pedofilia é sempre gravíssimo e quando um padre está envolvido é ainda mais gravíssimo porque o padre é a única pessoa que semanalmente se coloca em frente da comunidade a falar do Evangelho, de Jesus, da verdade, da justiça, dos mais débeis, dos mais frágeis. Esta pessoa não pode depois ter uma vida totalmente contrária e, muito menos, ser o predador ou ser aquele que vai atacar o jovem, o idoso ou a pessoa fragilizada. Isto não pode acontecer.
Depois da cimeira sobre abusos que o Papa promoveu em Fevereiro, o que vai fazer a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP)?
O sr. Cardeal-patriarca vai dar novidades em breve.
Que novidades? Vai passar a ser obrigatório passar a comunicar as suspeitas às autoridades?
Nada disto é fácil. Já me aconteceu alguém vir dizer, não num contexto de pedofilia, que cometeu uma falha, não um caso de pedofilia, mas de outro tipo de crimes. Na conversa, tentamos que a pessoa assuma essa responsabilidade perante a vítima, a sociedade. Lembro-me sempre do contexto do filho que chega a casa e diz ao pai que cometeu um crime (roubou, matou, violou, etc). O pai não pega no filho imediatamente pela orelha e leva-o à esquadra. O pai vive momentos de grande sofrimento, entre o amor, o carinho e o sentimento de protecção do seu filho e aquilo que é obrigatoriamente as suas responsabilidades como cidadão.
Há ali um período de tempo, uma eternidade de minutos, para se encontrar uma solução e dizer: “Meu filho, tu cometeste esse pecado, essa falha perante a sociedade, e eu vou ajudar-te a corrigir, a consertar e vamos perante as autoridades tratar do assunto”. Nada disto é fácil e, por isso, desde o encontro com o Papa, o patriarca tem estado a trabalhar de modo a que se possa encontrar uma plataforma, um serviço, alguma coisa que possa acolher, fazer a triagem, saber da verdade, sabendo que o top da preocupação é a vítima.
Há uma coisa que me faz confusão que é perceber como é que é articulada a comunicação entre os sacerdotes e as polícias. No final da reunião da CEP, em Fevereiro, o porta-voz dizia que havia mais duas denúncias e que ainda não tinham sido comunicadas à polícia porque as instituições da Igreja estavam a averiguar se havia “credibilidade” ou “fundamento” nessas queixas. Quem deve averiguar melhor essa credibilidade e fundamento não são as autoridades civis?
Decorrente do encontro com o Papa, temos constatado que há diferente legislação de país para país. Veja-se o caso do cardeal Barbarin em França. O Papa, quando legisla, legisla para o mundo inteiro, para a Igreja Católica. Mas quando chegamos à realidade do país A e do país B, há legislações diferentes quanto à obrigação de denúncia, à não-obrigação de denúncia e por aí fora. Há dias, o Papa, num documento próprio de legislação para o Estado do Vaticano, disse: “Aqui, sou chefe de Estado e aqui quero que seja assim”. E ele quer que seja como está a dizer. E acho que ele está a dizer: “Façam como eu estou a fazer”. Nós estamos a trabalhar para que também isso aconteça.
O porta-voz da CEP [na citação que fez] tem razão mas é numa fase uns segundos antes [da eventual participação às autoridades]. Há aqui um hiato de tempo, e este é que tem que ser cirúrgico, para falar com a pessoa, dizer: “Nós recebemos aqui isto, como é?”. E com a equipa de profissionais, avaliar. Lembro-me de uma carta anónima quando estava no Porto de uma situação pouco agradável que não tinha a ver com isto. Mostrei a carta a um conjunto de pessoas amigas de áreas profissionais desse mundo e cada um deles disse: “Isto não é verdade, não ligue a isto que não é verdade. Isto é alguém que apenas quer mal à pessoa portanto, agora faça assim”. Eu tentei falar com o denunciante e nunca consegui. Ora, quando estou assessorado por pessoas que até são desse mundo, não faz sentido denunciar às autoridades.
A comissão vai, portanto, envolver pessoas que não são só da Igreja. Muita gente associa os casos de abusos ao celibato sacerdotal. Acha que vai acabar por haver alguma revisão do celibato?
Sinto-me sempre triste, magoado e desrespeitado quando dizem celibato igual a pedofilia. A minha experiência de vida não me diz absolutamente isso. Agora, vidas duplas absolutamente, não. Na carta que fez em Fevereiro, o Papa dizia que há aqui um problema grave nas nossas comunidades que é alguém julgar que no seu contexto há folga para a asneira. Como é que um político que não seja sério acha que está acima do controle, transparência e exigência? Significa que à sua volta o contexto permite que isso aconteça. Nós, sacerdote e clero, não estamos nem devemos ter a tentação [de pensar] que estamos acima da lei.
O fim celibato e a ordenação de mulheres são temas fracturantes ou são uma questão de tempo?
Em relação a esse assunto [das mulheres], está fechado, fechado pelo Santo Padre. Tenho dito, e é a minha experiência, que quem manda nisto tudo são as senhoras. Sou um fã da Madre Teresa de Calcutá. Nunca a vi preocupada ou com desejo de ser ordenada sacerdote. Tenho profunda consciência que nós somos chamados por Deus a uma vocação. No dia em que Deus entender chamar à vocação do exercício sacerdotal uma senhora, isso acontecerá. Agora e neste tempo que vivemos, o assunto está encerrado. Isso não significa nem mais respeito, nem menos respeito, nem mais poder, nem menos poder. Sem as mulheres não havia o sim de Maria e não estávamos aqui a falar neste contexto.
Numa altura em que se fala tanto de crise de vocações, não pode ser a necessidade a trazer a mudança?
O Santo Padre abriu, e está a decorrer, um tempo de reflexão em relação ao diaconato feminino. Já aconteceu no passado e não está fora de questão que aconteça no futuro próximo.