Biblioteca Municipal de Valongo: “A nossa casa é o pão”
Valongo tem espaços de biblioteca espalhados por todo o concelho. Nalgumas freguesias, os diversos Espaço Cidadão servem como ponto de requisição e devolução de livros.
João Rosas, chefe de Divisão de Património Cultural, Bibliotecas, Arquivo e Documentação de Valongo, tem uma abordagem simples e original sobre a forma como vê a sua missão na Biblioteca Municipal de Valongo: "Costumo dizer, em tom de brincadeira, que a minha missão aqui é ir para fora da biblioteca, virar-me de costas para ela e olhar para a cidade e para o concelho, pensando no que é que tenho à minha frente. E essa é a missão de um bibliotecário: intervir na comunidade, quer fornecendo livros e informações, quer proporcionando o espaço da biblioteca como palco cultural e centro social da comunidade, como espaço de lazer, de encontro entre amigos e de conversa."
O responsável da Biblioteca Municipal de Valongo busca inspiração na arte renascentista para levar o seu ofício a bom porto: "Há aquela pintura do Rafael, no Vaticano, que se chama ‘Escola de Atenas’ e que, para mim, é a referência do que deve ser uma biblioteca. Nela, a biblioteca é um espaço de debate, onde se estuda, lê, investiga, experimenta e adquire conhecimento sobre novas tecnologias. Nesse sentido, por exemplo, nós fazemos aqui oficinas de robótica. E, depois, realizamos também concertos meditativos, teatro e formação de competências para a terceira idade, nomeadamente ao nível digital, entre muitas outras coisas. Ou seja, a sociedade reflete-se na biblioteca."
Quando veio para Valongo, João Rosas não conhecia bem o concelho e visitou muitas entidades ligadas à deficiência. Durante essas visitas, percebeu que devia pensar na biblioteca como um espaço de acolhimento para todas as pessoas. Neste sentido, foi implementado na biblioteca um sistema de comunicação aumentativa e alternativa. "Basicamente, são formas de expressão diferentes da linguagem falada, que visam aumentar e, ou, compensar dificuldades de comunicação e linguagem de muitas pessoas com deficiência", explica.
Foram ainda construídas ferramentas para as necessidades complexas da comunicação e de orientação no espaço por parte de utilizadores com especiais e dificuldades na vida quotidiana ou na inclusão social, como por exemplo pessoas com autismo, deficiência intelectual, idade avançada e ausência de linguagem, entre outros. "A biblioteca, atualmente, está preparada para receber toda a gente."
Valongo tem espaços de biblioteca espalhados por todo o concelho. Os principais são em Valongo, Ermesinde e Alfena, mas, nas outras freguesias, os diversos Espaço Cidadão servem como ponto de requisição e devolução de livros. "A nossa preocupação é levar o serviço de biblioteca a todo o concelho, mesmo às zonas mais remotas, e sobretudo àqueles que não têm possibilidades de se deslocar, seja porque não têm carro ou porque há poucos transportes públicos", justifica.
Destaque merecem ainda as Biotecas, um projeto das Bibliotecas Municipais de Valongo em parceria com a Public Libraries 2030, chamado Citizens Engagement for Biodivercities, cujo objetivo é promover iniciativas de preservação ambiental e sensibilizar para a importância da conservação da biodiversidade em Valongo, além de reforçar a promoção do livro e da leitura. "São pequenas bibliotecas, como as que existem em muitos pontos do mundo, pequenas caixas com livros para troca ou oferta e às quais associámos um telhado verde e floreiras com espécies vegetativas que ajudam à polinização. No nosso concelho, são 12 e estão posicionadas em parques, jardins e largos. A dinâmica de utilização é muito simples: pedimos às pessoas que, ao levarem um livro, deixem outro. Se não for possível a troca, pedimos que o devolvam após a leitura." As floreiras albergam espécies melíferas de pequena dimensão, como alecrim rastejante, urze, lavanda, tomilhos, orégãos e outras aromáticas.
— Valongo. Uma História do Pão, porquê este livro?
— A escolha tem a ver com séculos de uma forte presença do pão, da regueifa e do biscoito aqui no concelho, que era o grande fornecedor de pão para o Porto. Aliás, conta a lenda que Valongo não foi destruída durante as invasões francesas porque os franceses vinham aqui buscar o pão e a broa a Avintes, e era preferível não destruir a fonte de alimentação. Não sabemos se foi exatamente assim, mas existe essa lenda e ainda hoje Valongo é uma referência nessa indústria, tendo bons embaixadores do pão, do biscoito e da regueifa. Este livro, Valongo. Uma História do Pão, de Olga Cavaleiro, remete-nos para esse universo, para as muitas famílias que produziam e vendiam pão e para as mulheres que iam para o Porto de madrugada com cestos à cabeça para vender na zona do Campo 24 de Agosto. Portanto, há uma longa história económica e social associada ao pão, e foi por isso que escolhemos este livro que nos dá muito orgulho, quer pela nossa história, quer pelas publicações que o município faz sobre património cultural. Valongo tem uma grande paixão por livros e investe muito em publicações. A título de exemplo, posso referir alguns, como Os Romanos em Valongo, O Hóquei em Valongo e O Brinquedo Tradicional Português. Quero ainda destacar a Oficina da Regueifa e do Biscoito de Valongo, onde todos podem conhecer a história do pão aqui no concelho e participar em workshops para aprender a confecionar essas iguarias.
No início de Valongo. Uma História do Pão, há uma nota de José Manuel Ribeiro, presidente da autarquia, que vale a pena partilhar: "Crescer nesta terra, onde o aroma do pão e dos biscoitos desperta as memórias de infância, foi uma aventura inigualável que me enche de imenso orgulho. Ainda hoje, esse aroma é algo que me lembra de onde eu vim e quem eu sou. (…) A panificação em Valongo é uma tradição ancestral, enraizada há quase meio milénio. Fomos um dos principais fornecedores de pão do Porto durante séculos, alimentando não apenas as pessoas, mas também os laços que nos unem como sociedade. Mesmo diante de desafios monumentais (…) os nossos padeiros e as nossas padeiras ergueram-se e superaram-se, garantindo que o pão nunca faltasse na mesa das pessoas."
Olga Cavaleiro presenteia-nos com um autêntico tratado sobre o pão, referindo as origens do alimento e o seu significado: "A nossa casa é o pão e dela não quisemos sair desde que conhecemos aquele alimento. Nessa casa encontrámos o conforto, a segurança e o refúgio para os tormentos da fome. Antes do produto transformado, foram as sementes que nos alimentaram, o trigo que nos cativou. Apesar de pequenas e cobertas por uma impenetrável casca, as sementes de trigo souberam atrair a humanidade que, há cerca de 14.000 anos, habitava pelo Crescente Fértil. Perante a diversidade disponível no meio-ambiente, aos humanos não passaram despercebidos os grãos de trigo que, após ingestão, provocavam sensação de bem-estar. (…) Terá sido o pão o fio que deu início à história da panificação de Valongo. Alimento fundamental, gerado e criado na necessidade de subsistir, desenvolveu-se na triagem entre o pão alvo e o pão negro. O mesmo é dizer, entre o pão das casas ricas e o pão dos que menos tinham. Pela procura que a abastança sempre permitiu, fomentou-se a excelência capaz de saciar o gosto mais requintado. Da procura do melhor trigo à moagem feita pelas mós alveiras, ao cuidado do uso das peneiras capazes de deixar a flor da farinha, às mãos que, laboriosamente, amassavam a farinha, a água, o sal e o fermento. Por aqui se teceu o fio que deu origem a tantos e bons produtos, todos feitos de trigo."
E, por fim, os testemunhos. Têm a palavra os padeiros de Valongo:
"A minha vida foi o pão. Era padaria porta sim, porta não. No tempo do meu avô, onde eu morava havia quatro. Era a do Ricardo e da Celeste, os Irmãos Moreira, havia outra lá ao lado, e a nossa."
Joaquim Moreira Camilo, 85 anos
"Sou filho, neto e bisneto de padeiros e biscoiteiros. O meu pai era filho de padeiros, mas o meu pai já era biscoiteiro. A minha mãe era filha de padeiros. O meu bisavô, por parte do meu pai, (…) era padeiro e biscoiteiro, já fazia biscoitos."
António de Castro Alves Aguiar, 85 anos
"Trabalhávamos de noite no pão e, de dia, cada um ia fazer as suas entregas. Depois, vínhamos, tomávamos o pequeno-almoço e começávamos com o biscoito."
Maria Emília Ferreira Aguiar da Fonseca, 82 anos
"Em casa de padeiros, nunca o pão faltou. Cumprindo o ritual de fazer moletes, sêmeas e regueifa para vender pelo Porto e arredores, sempre ficava para alimentar a família. Por isso, em casa de padeiros, à mesa, a acompanhar o conduto, nunca faltava o pão de trigo, nem o pão de milho entrou."
Maria Lina Castro Neves, 80 anos
Há dias, comentei com um amigo que estava a ler este livro. "Um livro sobre pão? Há assim tanto para dizer sobre pão?", perguntou-me, surpreso. "Se há...", respondi.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990