Biblioteca Municipal D. Dinis, Odivelas: “Aqui há gato”

Cerca de 25 entusiasmadas crianças, entre os 3 e os 10 anos, e os seus respetivos progenitores, observavam-na expectantes.

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A Biblioteca Municipal de Odivelas tem diversos projectos para públicos diferentes João da Silva
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— O que vêm fazer à biblioteca a esta hora da noite? —, perguntou Dina, a anfitriã da atividade “Aqui há gato”, organizada pela Biblioteca Municipal D. Dinis, em Odivelas. Pouco passava das 21 horas.

Cerca de 25 entusiasmadas crianças, entre os 3 e os 10 anos, e os seus respetivos progenitores, observavam-na expectantes.

— Eu sei que venho fazer coisas, mas não sei o que vai acontecer , respondeu um pequenote, cinco anos no máximo, aos pulos de braços no ar.

Como levam livros da biblioteca? —, perguntou Dina.

A minha mãe levou para casa sem pagar. Que matreira, mãe! —, respondeu o João, que teria uns 8 anos.

Gargalhada geral. A mãe, surpreendida, também sorriu.

Bom, aqui tudo é gratuito, e há um cartão que todos podem ter —, explicou Dina.

Eu já tenho , disse o João, reforçando o seu papel de mais participativo, ainda antes do início oficial da atividade.

Pronto, é com esse cartão que podem levar livros.

O cartão é gratuito , acrescenta o João.

E podem vir à biblioteca para ler livros, estudar, brincar...

Brincar? , pergunta uma menina.

Sim, brincar, aqui na biblioteca também podem brincar e há uma sala só para isso.

Nenhum espanto notei no rosto dos que já conheciam a biblioteca. Nos estreantes, todavia, vi alguns olhos arregalados e segredos partilhados com os pais.

E, então, o que vieram cá fazer esta noite, meninas e meninos? , insistiu Dina.

Ouvir uma história —, arriscou um dos miúdos.

Hora do conto —, atirou outro.

Não, não, vocês vieram para o “Aqui há gato”, uma atividade na qual os vossos pais vos inscreveram. E o que quer dizer “Aqui há gato”? É uma expressão que os adultos usam muito… Vá, os pais podem ajudar.

Quer dizer que aqui há coisa —, explicou uma das mães.

Isso mesmo! Então, vamos todos descer as escadas em silêncio e perceber se vai acontecer alguma coisa.

Até os pais? —, perguntou o João, cujo silêncio já causava estranheza.

Pode dar uma pista? —, pergunta outro miúdo.

Entretanto, uma pequenita, provavelmente impressionada com a máquina fotográfica que eu levava ao pescoço, diz-me:

O meu pai é pasteleiro, sabe fazer pastéis de nata maravilhosos.

Sorri e aproveitei a deixa para trocar algumas impressões com o pai. E fiquei com a morada do local onde faz os tais pastéis de nata…

Descidas as escadas em silêncio, entrámos na sala de leitura dos adultos, onde o Rodolfo, um dos protagonistas da aventura “Aqui há gato”, nos espera com uma lanterna na cabeça.

Vou contar-vos uma primeira história para explicar porque é que as crianças não podem entrar na biblioteca. A primeira razão é que as crianças deixam macacos nos livros! —, disse o Rodolfo.

Seguiram-se mais algumas razões e muitas gargalhadas, até que entrou em cena a Matilde, a gata do Rodolfo, para contar uma história e recomendar uma receita para as crianças fazerem em casa com os pais.

Vocês vão fazer “Manjar Branco de Pescada”!

Ouviram-se muitos risos e alguns protestos. Os pais sorriram, claro. Os pais sabem que o peixe faz bem aos meninos.

Um aparte: ainda me lembro de ser criança e, ao chegar a casa da escola, morto de fome, sentir o cheiro a peixe cozido e protestar com a minha mãe, dizendo que não era justo, depois de um dia inteiro na escola, comer peixe ao jantar.

Numa visita prévia à Biblioteca Municipal D. Dinis, apaixonei-me pelo Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas, que conta com 209 receitas, sobretudo de bolos, biscoitos e sobremesas com muitos ovos. A freira em questão é Carolina Augusta de Castro e Silva, e o mosteiro é o Mosteiro de Odivelas, fundado e doado por D. Dinis o cognome “O Lavrador” é o mais conhecido, mas foi também chamado de “O Rei-Poeta” ou “O Rei-Trovador” à ordem das Bernardas de Cister, em 1295. Neste belíssimo livro, além das receitas, relatam-se histórias e tradições: “O Mosteiro ficou afamado pela sua magnificência… pelo grande número de religiosas… pela sua confeitaria delicada e graciosa… e a saborosa marmelada… e ainda hoje sobrevivente e que tem vindo a vender nas pastelarias da povoação.”

E é verdade. Se for a Odivelas, encontrará pastelarias onde se vende marmelada branca. Logo a seguir ao elogio à iguaria, vem uma “Cantiga de Odivelas”. Eis o primeiro verso:

Dos doces de Portugal / que todo o mundo bem diz, / como prendas muito belas, / há um que não tem rival: / Marmelada de Odivelas / do tempo de D. Dinis.

Fechado o parêntese do “Manjar Branco de Pescada” que, na verdade, é uma sobremesa bastante doce que nos levou à marmelada branca, segue a continuação do relato da noite “Aqui há gato”. Rudolfo e Matilde convidaram os pais a ler para os filhos. O livro sem bonecos percorreu as mãos dos graúdos, para gáudio dos pequenos.

Eu sou um macaco —, diz uma das mães.

A minha cabeça é feita de pizza de mirtilos —, lê outra das mães.

Como formigas ao pequeno-almoço —, acrescenta um dos pais.

Este é o livro que obriga os adultos a dizerem coisas tontas —, conclui a gata Matilde.

Seguiu-se um lanche: água, sumo, chá e bolachas. Depois, uma história final. Todos foram para casa com um sorriso nos lábios.

Finda a atividade, conversei com Clara Ziebell, coordenadora da Biblioteca Municipal D. Dinis.

É esta uma das formas de promover a leitura entre os mais jovens?

Todos sabemos que não se nasce leitor, mas a leitura promove o pensamento crítico, a concentração, o relaxamento, a memória, a criatividade e pode contribuir para a longevidade. José Saramago afirmou que “o livro não vai modificar em nada o funcionamento do mundo, mas gostaria que mudasse alguma coisa no espírito de quem o lê”. Para isso, é necessário desenvolver estratégias que respondam às necessidades e interesses de todos, promovendo a leitura por prazer e o diálogo sobre temas relevantes. Essas ações devem ser regulares e, se possível, realizadas em parceria com entidades locais para aumentar o impacto na comunidade.

Percebe-se que a Clara é bibliotecária por paixão…

Sem dúvida! Sempre gostei muito de ler. Na 4.ª classe, a minha professora ofereceu-me Os cinco na casa do mocho. Li-o e reli-o vezes sem conta. Há 40 anos, o livro era um bem precioso, o seu acesso não estava democratizado como hoje. Dessa altura, recordo também o livro em banda desenhada Vida de Luís de Camões, e a valentia daquele homem que sobreviveu a um naufrágio, nadando só com um braço e segurando no outro umas folhas manuscritas que viriam dar origem a Os Lusíadas. Na adolescência, a minha irmã era sócia do Círculo de Leitores e li muito graças a isso. Na minha escola, havia uma biblioteca, mas os livros estavam dentro de armários com portas de vidro fechadas à chave! Mais tarde, em Coimbra, frequentei as diversas bibliotecas da cidade e, terminada a licenciatura, inscrevi-me no Curso de Especialização em Ciências Documentais. Ainda fiz uma breve passagem pelo ensino, mas enveredei pelo mundo dos centros de documentação e das bibliotecas, onde me encontro até hoje.

Está nesta biblioteca há 22 anos, terá muitas recordações…

Sim, recordo leitores, momentos e passagens… Crianças que sorriem de orelha a orelha ao despedirem-se das mediadoras de leitura na atividade de Hora do Conto. São momentos que lhes ficarão na memória e que as motivará a regressar à biblioteca, à leitura e aos livros, tornando-as leitoras para a vida! Depois, os séniores que religiosamente vêm ler o jornal e que são muitas vezes os primeiros a entrar. Até estranhamos quando não aparecem… Ou aquela aluna que, no âmbito de uma iniciativa da biblioteca, revelou: “Quero muito ser escritora!” E, claro, os participantes do projeto “Bibliófilo vai a Casa”, utentes de lares e centros de dia, que aguardam com expectativa a chegada das meninas da biblioteca com livros, animação, boa disposição, provérbios, música e jogos. Muito mais havia para contar, mas termino com o projeto “Leitura e Arte”, que se destina a pessoas portadoras de doença mental, e com a memória de um senhor idoso, de poucas palavras, que, de 15 em 15 dias, ia à biblioteca requisitar três livros clássicos portugueses e que há muito deixou de aparecer…

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Biblioteca Municipal D. Dinis fica em Odivelas João da Silva

Clara sugeriu-me a leitura de vários autores locais. Inspirado pelo “Aqui há gato”, escolhi Mário Máximo, que no livro As Viagens Essenciais, nos oferece um poema felino:

“Os gatos repetem o mundo do dia anterior no dia presente, no dia seguinte e nos outros que se seguem.

Os gatos descobrem, de vez em quando, algo que lhes parece novo. E, se gostam, logo o assumem como adquirido, isto é, como pronto a ser integrado no repertório do seu quotidiano de eternidade instintiva.

Após cada aquisição de nova rotina logo se repete no dia seguinte e no outro e nos outros que se lhes seguirão.

E os gatos fazem-no por inteligência, por pura inteligência. Eles apenas querem que o que lhes dá prazer seja repetido uma e outra e outra vez. E sempre até à consumação da eternidade de gato.

Tal como nós, os gatos são. Só que nós ainda mais repetimos mas tendo menos prazer em cada repetição sempre menos prazer.

É que em cada repetição encontram os gatos o sabor da novidade e nós, de tão inteligentes, apenas encontramos algo que já foi nosso, verdadeiramente nosso, no primeiro dia que tudo o que existe tem.”

Deixei a Biblioteca Municipal de Odivelas por volta das 22h30. A caminho de casa, já no carro, a minha filha, que tem 4 anos, disse-me:

Já tenho mais uma amiga, pai. É a gata Matilde.

Ainda bem que gostaste, filha.

As crianças adoraram ver os pais envolvidos nas suas atividades. Acho que não é preciso fazer grande coisa; basta estar e prestar atenção. As memórias ficam para sempre. E o que somos nós sem memórias?


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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