Biblioteca Municipal Camilo Castelo Banco: Onde está a felicidade?

A diretora sugeriu-me uma “espécie de road trip literária” através do livro Camilo Castelo Branco, por terras famalicenses, da autora local Maria de Fátima Castro.

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Uma biblioteca "enorme, luminosa e ultra funcional" João da Silva
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Carla Araújo, diretora da Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, em Famalicão, não tem dúvidas sobre a sua missão enquanto responsável pela biblioteca: “Fazer clientes felizes.” Nesse contexto, Carla destaca diversas atividades e iniciativas que tiveram impacto significativo na comunidade ao longo dos anos, à cabeça o “ODS: Juntos Mudamos o Mundo”, que tem vindo a ser desenvolvido de forma contínua e sistematizada nos últimos anos, e que visa dar a conhecer e sensibilizar a comunidade para os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e que engloba o concurso de escrita criativa “Todos por um mundo melhor”. E explica: “A biblioteca municipal disponibiliza, em acesso livro e gratuito, uma coleção de contos digitais e interativos, dedicados aos ODS. Esta coleção de contos conta já com 13 histórias que foram escritas por crianças e jovens, para crianças e jovens.”

— Contos digitais e interativos. Esta é também uma forma de adaptação às mudanças tecnológicas e digitais…

— Sim, também. A forma mais comum das bibliotecas se posicionarem na área das tecnologias e do digital passa, desde logo, pela disponibilização de catálogos online, através dos quais os leitores podem aceder ao catálogo da coleção de livros da biblioteca, realizar pesquisas, efetuar reservas de documentos, renovar os empréstimos domiciliários, etc.. No caso concreto da nossa biblioteca municipal, disponibilizamos um catálogo online, onde se congregam todas as coleções das bibliotecas municipais e escolares de Famalicão, e disponibilizamos, também, uma aplicação, designada “A minha Biblioteca”, para uma interação mais facilitada com as funções do catálogo.

— E presencialmente, como é a afluência?

— É elevada. As crianças, em contexto escolar, visitam regularmente a biblioteca para participação nas propostas do Serviço Educativo e Cultural, como por exemplo, as horas do conto, as oficinas, os encontros com os escritores e ilustradores e as apresentações de livros, entre outras. Relativamente às famílias, e pela razão da biblioteca municipal se encontrar aberta aos sábados, de manhã e à tarde, temos registado uma boa afluência às propostas apresentadas pelo Serviço Educativo e Cultural, mas, e para além disso, temos percebido que a biblioteca se assume como um espaço de lazer e de ocupação de tempo livre», acrescenta a diretora. Verifica-se, ainda, um crescente envolvimento do público sénior, sobretudo através do projeto ESPAÇO S(énior), cuja intenção principal é a de afirmar a Biblioteca Municipal como um espaço de referência para a ocupação dos tempos livres dos idosos, tirando dessa experiência proveito para aprofundar conhecimentos e estabelecer novas formas de contacto com a cultura e a informação.

– Contou-me que a biblioteca esteve encerrada durante três anos para obras de requalificação e ampliação. Como foi o regresso?

– Os nossos leitores e utilizadores estavam ansiosos por voltar à sua frequência e usufruir de espaços renovados, melhorados e mais convidativos e aprazíveis. As secções são tantas, e com tantas funções, que qualquer leitor encontra um local da sua preferência. Não se registou mudança no comportamento dos frequentadores, mas foram criadas condições para a biblioteca se adaptar aos diferentes perfis de frequentadores atuais: os que nos procuram como espaço de leitura, como espaço de estudo, como espaço de pesquisa e consulta, ou até, e tão-somente, como sala de estar.

Na visita à enorme, luminosa e ultra funcional Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, Carla, que se confessou “uma privilegiada por trabalhar numa biblioteca”, detalhou a história da Sala Eduardo Prado Coelho: “O professor tinha uma relação afetiva com Famalicão, pois acompanhava a atividade cultural, nomeadamente o Festival Internacional de Cinema e Vídeo, organizado por Lauro António. Depois do seu falecimento, a família decidiu doar a sua coleção com a condição de lhe conceder um espaço próprio e único. Aqui estão 12.500 livros que refletem os seus interesses, nomeadamente psicologia, sociologia ou artes, e muitos têm dedicatórias ao Eduardo Prado Coelho, o que os torna muito ricos. E mais ricos ainda são os que têm anotações do escritor com os seus pensamentos.”

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Pormenor da sala Eduardo Prado Coelho João da Silva

A diretora sugeriu-me uma “espécie de road trip literária” através do livro Camilo Castelo Branco, por terras famalicenses, da autora local Maria de Fátima Castro. O livro, lê-se na introdução, “foi pensado para ser escrito à volta de uma ideia: percorrer espaços famalicenses na companhia de pessoas que as obras de Camilo Castelo Branco escondem nos seus cenários e enredos”. Através das personagens e cenários, das pessoas e espaços, itinerários e costumes, e pela ficção e realidade de mãos dadas, este livro traça vários percursos para visitar Vila Nova de Famalicão, sob a vivência do escritor.

Eis um exemplo: “Vila Nova de Famalicão também teve lugar em Duas Horas de Leitura e Vinte Horas de Liteira. O ‘Epidauro de Gondifelos’ tinha grande fama nas terras ‘duas léguas ao redor de Vila Nova de Famalicão’. Destaco do primeiro texto a pintura que Camilo Castelo Branco fez da ‘fisionomia do doutor’ que tratava ‘a lombriga das cem braças’ e com quem, ele e os seus companheiros, se encontraram na ‘estalagem real’ em Vila Nova de Famalicão. Nessa, Camilo Castelo Branco e os seus companheiros repousaram da sua peregrinação. Nenhum deles sabia ‘o nome do varão prestante que mata a bicha-solitária!’. Mas esse mezinheiro era ilustre e esperava essa comitiva que o ia consultar ou, talvez, aproveitar esse encontro para ironizar do ‘saber’ de quem julgava ter a arte de matar ‘a bicha-solitária’.”

Durante a visita, conheci o bibliotecário Hilário Pereira, que ali trabalha desde 1989. “No dia 2 de novembro, completei 35 anos de trabalho nesta instituição. Mas não fui sempre bibliotecário. Eu sou licenciado em história, mas comecei por trabalhar no bibliomóvel. Depois, interessei-me pela área e fiz a pós-graduação em ciências documentais.”

— E como era trabalhar no bibliomóvel?

— Era muito bom. Era eu e o Luís, que ainda trabalha aqui na biblioteca. Foi uma experiência muito boa até eu ter um acidente e me disseram que ‘a partir de hoje não tocas mais no bibliomóvel’. Tive pena porque era uma liberdade total. Percorríamos as freguesias todas do concelho e parávamos cerca de meia hora em cada uma, segundo um itinerário pré-definido. E tínhamos leitores dos mais pequeninos aos mais velhos e havia livros para todos. Mas o que saía mais eram os livros de Camilo. Depois começámos a ter mais novidades e as preferências mudaram.

— E entre os livros de Camilo, o que me sugere?

— Olhe, por exemplo, talvez um livro menos conhecido, publicado em 1856, e que se chama Onde está a Felicidade? —, responde, estendendo-me um exemplar da quarta edição, datada de 1878.

— Tem 146 anos… Posso folheá-lo?

— Claro que sim, os livros são para serem lidos —, diz Hilário.

Sentei-me a ler diante de uma prateleira repleta de livros do fundo local, onde se destacava um busto de Camilo. Foi sob o seu olhar de soslaio que explorei o seu Onde está a Felicidade?.

“Se me perguntas por o procedimento d'esta senhora, saberás que é exemplarissimo. Desconfio que tem morto o coração; mas a alma é immensa, e consome toda a sua actividade em valer aos infelizes. Eu tenho sido o confidente de heroismos, que morrerao com ella e commigo.

– Nunca le fallou em mim?

– Essa pergunta é vaidosa. Não, nunca me fallou de ti.

– Nem tu a ella?

– Querias que eu lhe fizesse o teu elogio?! Seria engraçado!

– Consideral-a feliz?

– É feliz.

– Não posso acreditar-te. Aquella mulher deve anciar por uma alma.

– Como a tua, naturalmente... Deixa-me dar a mais santa das gargalhadas... Ja nos conhecemos ha muito, Amaral... Querias, talvez, por commiseração, esmolar-lhe com o teu amor a felicidade que lhe falta? Não te afflija esse zelo do bem-estar de Augusta... O teu amor-proprio pode irritar-se; mas deixál-o: deves acreditar que não influes nada na vida d'aquella mulher. Sabes o que é a felicidade em Augusta? é o esquecimento. Sabes onde se encontra o esquecimento? A mythologia diz que é no Lethes: eu, que não sou pagão, digo que é nas mil diversões que offerece o dinheiro. Em summa, queres saber onde está a felicidade?

– Se quero!...

– Está debaixo de uma taboa, onde se encontram cento e cincoenta contos de réis... E adeus. Vou ao baile.”

Mantive a citação na grafia utilizada no fim do século XIX. Ler na grafia antiga é como desvendar um mistério linguístico, tornando a experiência de leitura ainda mais rica e autêntica, ligando-nos ao contexto dos escritores de então.

E então, confesse: não se sentiu a viajar no tempo?


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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