Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva: o que significa ser humano?
A simplicidade da vida e as experiências humanas fundamentais nas reflexões sobre literatura e bibliotecas, que não são apenas repositórios de saber, mas espaços de vivência e de relação.
A Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva ergue-se sobre uma área que remonta à fundação de Bracara Augusta, há mais de dois mil anos. Neste espaço, outrora o coração da vida urbana romana, o Fórum delimitava as vias que, com a sua monumentalidade, facilitavam o tráfico intenso e a convivência de diferentes culturas.
Na sala de leitura da biblioteca, uma área do piso em vidro revela parte da cloaca romana, o antigo sistema de esgoto. Com a cabeça baixa e a lanterna do telemóvel a iluminar, percorri o chão milenar. É fascinante que, sob um espaço dedicado à leitura e ao conhecimento, se escondam vestígios de uma insula que albergava uma taberna e residências. A Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva não é somente um repositório de saber, mas um verdadeiro testemunho vivo do passado.
Aida Alves, a diretora da biblioteca, guiou-me pelo espaço, revelando aquela que acredita ser a sua missão: “O bibliotecário deve ser um leitor atento do mundo, sensível às necessidades da população e do território onde trabalha, procurando integrar redes de trabalho e criar o sentido de vizinhança com vários parceiros individuais e institucionais, promover a educação e o desenvolvimento de literacias em todas as faixas etárias e estimular o gosto pela leitura e o pensamento crítico.”
Que atividades atraem mais visitantes? “Temos uma excelente afluência de crianças e famílias em todas as atividades, tanto durante a semana como ao fim de semana. As atividades de cinema para adultos à noite também são motivo de atração.” Os encontros com autores de renome nacional têm sido muito mobilizadores, abrangendo literatura, saúde, religião, espiritualidade e história local. “Estes ciclos de conversas têm sido benéficos para a fixação de públicos à biblioteca, o que se reflete no comportamento muito estável na procura de livros para leitura em casa. Antes da pandemia, os empréstimos rondavam os 4500 a 5000 livros emprestados por mês e estamos gradualmente a chegar a esses valores. O número de leitores inscritos cresce regularmente, com cerca de 1200 novos leitores por ano”, acrescentou.
Como sugestão para a Road Trip Literária deste vosso escriba, Aida escolheu a obra Os Implicados, de José Manuel Mendes. Este autor versátil destaca-se como poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e cronista, com cerca de 30 títulos publicados e um vasto currículo. Entre os seus feitos mais relevantes, destacam-se os cargos de deputado à Assembleia da República de 1980 a 1991 e de presidente da Alta Autoridade para a Comunicação Social, além de ter recebido inúmeras distinções ao longo da sua carreira. Atualmente, é professor convidado na Universidade do Minho.
O livro Os Implicados é uma coletânea que reúne 65 textos escritos ao longo de três décadas, tendo sido lançado no contexto dos 50 anos da vandalização da sede da Sociedade Portuguesa de Escritores, evocando a luta pela liberdade de expressão. Na epígrafe do livro, o professor cita Cormac McCarthy: “A única coisa que realmente merece a tua atenção é a angústia dos teus companheiros de viagem neste comboio do inferno”, o que revela a sua preocupação com a condição humana e a solidariedade social.
Destaco o texto intitulado Henrique Barreto Nunes — Da Biblioteca ao Leitor, no qual José Manuel Mendes reflete sobre o papel vital da leitura, dos livros e das bibliotecas na construção de uma sociedade crítica e consciente. O professor questiona o que é um livro, considerando-o não apenas um objeto, mas um “lugar de vida, um lugar de morte, a urgência e a tranquila perseverança dos sonhos”. José Manuel Mendes destaca a dualidade do livro como fonte de conhecimento e experiência emocional, num processo que abre espaço para novas ideias e reflexões, permitindo ao leitor explorar as complexidades da existência.
O texto também realça a função essencial da biblioteca pública: “Não pode ser um espaço intemporal, afastado da vida e do mundo. A Biblioteca Pública deve dar aos seus frequentadores a possibilidade de participar nos debates que interessam à sua comunidade. O pluralismo manifesta-se pelo exercício e não pela omissão.”
José Manuel Mendes termina com uma nota de nostalgia e esperança, evocando uma sensação de interligação entre o passado e o presente: “Não sei, amigos, se era isto o que eu gostaria de dizer. Mas para não dizer uma parte do que gostaria de dizer lavrei esta prosa de outono. Aqui a sofreram. Aqui, em Tibães, onde invento um cheiro a castanhas que não teremos. Um cheiro a pássaros, um cheiro a astros.”
“Cheiro a castanhas” e “a pássaros”. A simplicidade da vida e as experiências humanas fundamentais nas reflexões sobre literatura e bibliotecas, que não são apenas repositórios de saber, mas espaços de vivência e de relação entre pessoas. Como podemos constatar na emocionada partilha de Aida Alves.
“Nos meus 20 anos de experiência na biblioteca, tenho muitas histórias para contar. Por exemplo, recordo com emoção o momento em que revi um leitor que se inscreveu na biblioteca em criança. Ele afastou-se durante quase uma década e regressou já adulto, quase irreconhecível. Também me lembro de conhecer a história de um jovem casal que, ao se casar, pediu para filmar na biblioteca. O que é curioso é que eles se conheceram e apaixonaram aqui enquanto estudavam. Outra situação que me tocou profundamente foi a de um adulto já aposentado, nosso vizinho, que não tinha hábitos de leitura. Desde que a biblioteca abriu portas, ele começou a visitá-la praticamente todos os dias para ler, mesmo sem nunca ter realizado a sua inscrição de leitor. Ele vem à biblioteca diariamente como parte da sua rotina. Ao fim de muitos anos, neste mês de outubro, e com a insistência da responsável do Setor de Atendimento, Empréstimo e Circulação, fez finalmente o seu cartão de leitor. Mas, curiosamente, assegura que não vai levar os livros para casa, pois prefere lê-los presencialmente na biblioteca. É uma apropriação do espaço físico, como se fosse a sua segunda casa. Isto remete-me para as várias situações de pessoas sem abrigo que utilizam a biblioteca durante todo o dia, em busca do conforto de um lar. A nossa equipa tem-se sensibilizado e unido para apoiá-las, a fim de que tenham um teto e comida para sobreviver. Muitas foram as assistências sociais que acolhemos e orientamos. Por isso, afirmamos que as bibliotecas têm uma forte ação social.”
Ao ver um conjunto de pessoas com panos e linhas, quis saber do que se tratava. “É uma oficina de bordados que se chama Bordado da Amizade, uma atividade que integra a programação do serviço público da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. A dinamizadora pertence ao Instituto de Reabilitação e Integração Social de Braga, que mantém um protocolo com a biblioteca. Normalmente, estão presentes três pessoas a dinamizar a oficina, das quais duas são utentes da associação e, portanto, têm deficiências. Além delas, há outras pessoas que se inscrevem para aprender a fazer bordados, detalhou Maria de Jesus Peixoto, responsável pelo serviço Biblioteca no Apoio à Inclusão.
Trouxe um saquinho com corações bordados em linhas coloridas e despedi-me das pessoas que tão calorosamente me acolheram. À saída, Aida entregou-me o livro Lúcio Craveiro da Silva — Pensamento, Obra, Personalidade, Ação. “O nosso patrono foi um importante escritor, poeta e intelectual, pertenceu à comissão instaladora da Universidade do Minho e publicou diversas obras. É um homem com uma obra vastíssima e admirável”, resumiu, com entusiasmo, a diretora da biblioteca.
À porta da biblioteca, imaginando romanos a pé e a cavalo, folheei o livro e apaixonei-me pela escrita de Lúcio Craveiro da Silva. Não é difícil, como pode constatar no poema Na terra onde nasci, que aqui deixo:
Tortosendo, minha Terra, / quem me dera / ir ao Largo da Amoreira/ à casa onde nasci / e retornar à lareira / junto aos Pais, / ao berço brando / onde alegre adormeci / o meu futuro embalando!
Depois...– quem o suporta? / lancei-me na ousadia / da aventura, / tão incerta e desabrida, / do mar fundo / — o mar da vida! / onde me levou o mundo / que, remando, descobri!
Mas hoje ao voltar saudoso, / à minha Terra, / cansado dos vendavais, / parei mudo, duvidoso... / — Aonde vais?! / nem berço, / nem amoreira / nem os Pais / nem a lareira... / tudo o tempo levou! / Apenas dentro de mim / uma voz me segredou: / nem tudo mudou assim / pois resta dentro de ti / a luz que brilha e rebrilha, / e te encaminha na vida / e que... despontou aqui,... / — na “Terra onde nasci”!
Bibliotecas: faróis de esperança e de transformação, onde se descobrem conversas contínuas sobre o que significa ser humano e sobre a nossa relação com o mundo que nos rodeia.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990