Biblioteca Municipal José Saramago — Loures: desassossego e inquietação

Em dia de aniversário, a biblioteca inaugura neste sábado dois espaços de leitura: o Desassossego, com toda a obra de Saramago, e o Inquietação, pensado para os mais jovens.

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O local assemelha-se a um santuário, não no sentido religioso da palavra JOÃO DA SILVA
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Desde a adolescência que José Saramago é o meu escritor de eleição. Li todos os seus livros. Imaginem a minha alegria quando Marta Grachat, chefe da Unidade de Bibliotecas e Leitura Pública da Câmara Municipal de Loures, me indicou A Viagem do Elefante como sugestão de leitura para a Road Trip Literária — Ler é o melhor caminho.

Partilho um trecho que memorizei: “A vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos.”

Mas voltemos alguns minutos no tempo, ao instante em que entrei na biblioteca e vi a enorme parede de betão, onde estão gravados os títulos e as datas de publicação de todas as obras de José Saramago. Uma parede cinzenta, imponente e crua; uma página em branco à espera de ser lida. Li cada título recordando as narrativas e personagens que tanto me marcaram e tive vontade de ficar ali e de reler todos os seus livros.

De regresso à realidade, Marta, cuja paixão por ser bibliotecária “despertou desde a infância e floresceu durante o percurso escolar e anos de voluntariado na Biblioteca da Faculdade de Letras”, explicou-me o que se inaugura hoje, 30 de novembro (data de publicação desta crónica)*, no espaço contíguo à parede que homenageia o único português laureado com o Prémio Nobel da Literatura.

“O objetivo é dar um novo contexto a dois espaços na sala de leitura de adultos. Já existia uma área dedicada a José Saramago, com todos os seus livros e a parede com os títulos. Mas agora, para celebrar os 23 anos da biblioteca, quisemos transformar esse espaço e torná-lo mais apelativo para os jovens. Queremos que seja um lugar onde gostem de estar e de realizar algumas atividades. Temos encontros de pessoas na casa dos 20, 30 anos, e, portanto, esse público procura outras experiências além dos livros, como, por exemplo, sessões de cinema. E precisávamos de condições para isso. Vamos dividir a sala. De um lado, ficará o Desassossego, com toda a obra de Saramago exposta, sofás e mesas de apoio ao estudo, para as pessoas conviverem. Do outro lado, teremos o Inquietação, um espaço mais voltado para os adolescentes, onde vamos disponibilizar jogos de tabuleiro e tentar manter um puzzle sempre em construção, para quem passa coloque uma peça ou várias, como um desafio.”

Marta encaminha-me para as escadas, onde se lê “Sempre chegamos ao lugar aonde nos esperam”, a epígrafe de A Viagem do Elefante. A citação relembra-me outro trecho que li e reli vezes sem conta: “O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma autoestrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas”.

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Biblioteca Municipal José Saramago, Loures João da Silva

Ao atingir a base das escadas, surpreendo-me ainda mais com a imponente parede de betão, que, vista dali, ganha uma dimensão ainda maior, e os títulos nela gravados parecem ainda mais numerosos, como se a sua obra fosse infinita (e não é?). À direita do mural, numa parede perpendicular, também em betão, estão expostos todos os livros do autor, iluminados pela luz que entra por uma enorme janela retangular. Na parede oposta à dos livros, há uma faixa vertical com dez fotografias do escritor em diversos momentos da sua vida. As fotografias inferiores recebem luz natural de uma outra abertura no mural. O local assemelha-se a um santuário, não no sentido religioso da palavra — Saramago não me perdoaria —, mas como lugar de reverência e homenagem, digno do legado de um autor que, sendo ateu, tão profundamente explorou a condição humana em suas obras.

“O meu ateísmo não é destrutivo, mas sim crítico. Sou ateu, mas não sou tolo. A sociedade onde cresci e onde vivemos não se concebe sem Deus. Na arte, na linguagem, na cultura popular e erudita, a religião cristã está presente. Eu não creio em Deus. Mas se uma pessoa que está ao pé de mim acredita em Deus, então Deus existe para mim através da realidade que é essa pessoa”, disse Saramago numa entrevista.

Entre as inúmeras iniciativas que a biblioteca realiza, Marta Grachat destaca o projecto Entrelinhas, que pretende incentivar o gosto pelo livro e pela leitura, promover o combate ao isolamento social, facilitar a aprendizagem ao longo da vida e fomentar a solidariedade social, através da realização de várias oficinas solidárias.

“Procuramos sensibilizar o público adulto e sénior para a partilha de artes e de saberes associados a agulhas e linhas (malhas, rendas, bordados, costuras), com uma vertente essencialmente solidária, associando-se a campanhas ao nível local, nacional e internacional. No que toca ao público infantil, destaco as Tardes em Cheio, realizadas todos os sábados às 15h, onde promovemos livros e leitura, além de realizarmos oficinas temáticas. Também há o projeto Livros nos Parques, através do qual, durante o verão, a biblioteca invade os parques de Loures.”

– Quais são, na sua opinião, os principais desafios para promover a leitura?

– Chegar às pessoas e passar a informação de que as bibliotecas não são espaços mortos, mas cheios de vida e dinâmica e que possibilitam o acesso à informação e ao conhecimento de forma gratuita. E é por aí que passa também aquilo que acredito ser a minha missão enquanto bibliotecária. Tenho a convicção de que o contacto com a leitura faz toda a diferença na vida e no percurso do ser humano, pelo que aqui, na Biblioteca Municipal José Saramago, procuramos desenvolver projetos e dinamizar este espaço privilegiado para a leitura, de forma a realmente marcar essa diferença.

Quem fez (e continua a fazer) uma grande diferença na sua escrita foi José Saramago. Eis a origem de A Viagem do Elefante, nas palavras do próprio: “Se Gilda Lopes Encarnação não fosse leitora de português na Universidade de Salzburgo, se eu não tivesse sido convidado para ir falar aos alunos, se Gilda não me tivesse convidado para jantar no restaurante O Elefante, este livro não existiria. Foi preciso que os ignotos fados se conjugassem na cidade de Mozart para que eu pudesse ter perguntado: ‘Que figuras são aquelas?’ As figuras eram umas pequenas esculturas de madeira postas em fila, a primeira das quais, olhando da direita para a esquerda, era a nossa Torre de Belém. Vinham a seguir representações de vários edifícios e monumentos europeus que manifestamente enunciavam um itinerário. Foi-me dito que se tratava da viagem de um elefante que, no século XVI, exatamente em 1551, sendo rei D. João III, foi levado de Lisboa a Viena. Pressenti que podia haver ali uma história (…) e o livro resultante está aqui.”

Há várias frases da autoria de José Saramago nas paredes da biblioteca. Uma delas tem tudo a ver com a reformulação pela qual passou a sala de leitura: “Escrevo para desassossegar os meus leitores.”

A propósito, uma passagem de A Viagem do Elefante:

Por assombroso que pareça, um elefante necessita diariamente cerca de duzentos litros de água e entre cento e cinquenta e trezentos quilos de vegetais. Não podemos portanto imaginá-lo de guardanapo ao pescoço, sentado à mesa, fazendo as suas três refeições diárias, um elefante come o que pode, quanto pode e onde pode, e o seu princípio é não deixar nada para trás que possa vir a fazer-lhe falta depois. Foi preciso esperar ainda quase meia hora antes que o carro de bois chegasse. Neste meio-tempo, o comandante deu ordem de bivacar, mas foi necessário procurar para tal um sítio menos castigado pelo sol, antes que militares e paisanos se vissem transformados em torresmos. Havia a uns quinhentos metros uma pequena mata de choupos e foi para lá que se encaminhou a companhia. As sombras eram ralas, mas melhor esse pouco que permanecer a assar sob a inclemente chapa do astro-rei. Os homens que tinham vindo para trabalhar, e a quem até agora não se lhes tinha ordenado grande coisa, para não dizer nada de nada, traziam a sua comida nos alforges ou nos barretes, o mesmo de sempre, um grosso pedaço de pão, umas sardinhas secas, umas passas de figo, um naco de queijo de cabra, daquele que quando endurece fica como uma pedra, e que, em rigor, não se deixa mastigar, vamo-lo roendo pacientemente, com a vantagem de desfrutar por mais tempo do sabor do manjar.

Para quem não conhece a Biblioteca Municipal José Saramago, em Loures, recomendo uma visita. E, ainda mais importante: se ainda não o fez, não deixe de viajar pelo mundo tão fascinante e profundo de José Saramago.

* os registos fotográficos que acompanham a crónica são anteriores à criação dos espaços Desassossego e Inquietação.

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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