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Joker: Loucura a dois. “That’s entertainment”

Géneros fílmicos à parte, o contraste entre o primeiro Joker e a sua sequela é um espelho perfeito destes últimos cinco anos.

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Megafone P3: That's entertainment DR
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O anterior filme, Joker, produto pré-pandémico ali do finzinho da década, parecia anunciar o iminente caos dos conturbados anos 2020. Mais fascinante que a dita apropriação incel desta figura foi, a meu ver, a sua repercussão nos protestos que se tornaram frequentes no contexto dos confinamentos da pandemia e na sequência do movimento Black Lives Matter nos EUA, entre outros. Uma cara pintada que representava o desdém pelo sistema e o adotar da violência como resposta primitiva e justificada perante um mundo injusto.

Em 2024, as tensões de então são quase risíveis. Vivemos num mundo em que a violência já não é uma erupção, é uma constante. Já não há novidade, é banal. Se antes nos referíamos aos "abusos institucionais" como os vindos do homem legitimado pela farda, que dizer quando os aparelhos de Estado estão voltados para a destruição, sempre presente e em constante escalada, sem fim à vista?

Esta loucura é cultural. E em Joker: Folie à Deux sente-se bem o quanto a cultura abraçou este Joker — a idealização da máscara que esconde um homem doente —, com a sua mercantilização, o destaque que lhe é dado, a sede de o ter de novo em frente às câmaras para poder dele tudo espremer, para se poder cortar, colar e vender cada eventual rasgo que saia da sua boca. That’s entertainment.

Mas é curiosíssimo como nos vemos forçados a viver este hype mediático, assim como o Arthur, por trás das grades, dentro das salas, em frente às câmaras, e não no mundo exterior, à porta do asilo, do tribunal ou (salvo raras exceções) em frente à televisão. E quando a parede quebra e há essa hipótese de viver tudo isto nas ruas, há o desejo de fuga. É uma realidade insuportável.

É preferível viver na idealização, nas suas várias formas. Nas criações das nossas cabecinhas. Para uns, viver um amor em canção e dança, para outros ver num doente um mártir ou revolucionário, ver numa multidão inebriada a aceitação — supondo sempre que, no exterior, há algo que não corresponde exatamente à verdade, mas sim ao que queremos que ela seja.

Arthur tenta inclusive dar-se às narrativas, tenta corresponder-lhes, metendo a maquilhagem e fazendo um espectáculo para a câmara. Mas não é natural, não há rasgo. E, pelo meio, com o brutal choque de realidade de ver um dos poucos que gostava de si exatamente como era, aterrorizado pela brutalidade das suas ações.

Nunca seria fácil fazer uma sequela de Joker. Também não deveria ser necessária, mas face às pressões dos estúdios e pedidos de um público, porque não fazê-la como deve ser? Denunciado tudo isto, mesmo antagonizando quem se deu ao erro de idolatrar uma I.P. (propriedade intelectual) invólucro, para dar às massas uma reflexão sobre a saúde mental e a sua gestão pelos nossos sistemas.

E em jeito de musical, género comummente (e por norma sem fundamento ou conhecimento de causa) odiado pelo público masculino. Mas é pertinente reforçar que faz todo o sentido, considerando a natureza da personagem e a sua exploração no filme precedente. No meio de toda a perturbação é evidente o quanto nela há de musical.

Mas tudo isto, num filme desta magnitude e valor, é a meu ver um ato de alguma bravura e integridade artística.

Numa nota final, além dos arranjos e interpretações musicais notáveis de todo o elenco (até o Brendan Gleeson tem umas três ou quatro canções), a seleção musical é exuberante. Mais que um adorno, é o elemento perfeito na construção deste filme e da sua progressão narrativa.

Não é um filme perfeito. De todo. Pela sua natureza, nem todos os elementos colam da melhor forma. Mas nunca deixa de perder o seu sentido, nem em nenhum momento me senti desligado, ou a desligar. Eu sei que tenho tendência a gostar do que mais ninguém gosta (serve de exemplo outro Phoenix, o Napoleão de Scott, e pressinto que com o Megalopolis do Coppola também será igual), mas estas imperfeições fazem-me gostar mais disto tudo.

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