Comprar o cão com o próprio pelo na calada da noite

Ficou garantida a defesa do interesse público? Por que foi dado este passo e não se informou Bruxelas da assinatura de uma carta de conforto que poderia configurar uma ajuda de Estado encapotada?

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O relatório da Inspeção-Geral de Finanças, ontem divulgado, valida os indícios já conhecidos em torno da privatização da TAP, no estertor do Governo de Passos Coelho, a favor de David Neeleman. O empresário norte-americano terá adquirido a companhia área portuguesa financiando-se junto da Airbus (226 milhões de euros), com a TAP, por sua vez, a comprometer-se a adquirir, por igual valor, 53 aviões à construtora (sendo que há suspeitas de que esta compra poderá ter sido feita por uma quantia acima dos preços de mercado). Ou seja, foi a TAP, com capitais públicos, que suportou a sua própria privatização.

Parece complexo, mas, infelizmente, não é: trata-se de um padrão recorrente em grandes operações financeiras que, por detrás de uma aparente sofisticação, corresponde, no fundo, a um esquema que, em português corrente, se denomina, “comprar o cão com o próprio pelo”.

Como se não fosse o bastante, o relatório da IGF suscita ainda duas outras questões: um contrato de prestação de serviços da TAP privatizada com uma empresa de Neeleman, como forma de remunerar os acionistas, e o também já conhecido investimento danoso numa empresa de manutenção brasileira (perto de mil milhões de euros de perdas).

Infelizmente, não me ocorre nenhuma expressão popular capaz de descrever adequadamente esta forma particular e muito comum de economia circular negativa, com perdas significativas para o interesse público e evidentes ganhos privados.

Nada disto se prende com um debate político crucial, mas que tem sido propenso a instrumentalizações populistas desastrosas: sobre saber se um país com o nosso perfil económico deve ter uma companhia aérea integral ou maioritariamente pública ou integral ou maioritariamente privada. A questão aqui é o manifesto prejuízo do interesse público e vai para além da escolha do consórcio liderado por Neeleman.

Em junho de 2015, aproximavam-se as legislativas, mas o Governo de Passos Coelho estava em plenas funções e tinha legitimidade para decidir a escolha do comprador. Só que, na verdade, a privatização só ficou fechada mais tarde, já depois de o programa do segundo executivo de Passos Coelho ter sido chumbado no Parlamento. Foi um governo em gestão, que já se sabia iria ser substituído pela "geringonça", que assinou a privatização, à porta fechada, enquanto garantia junto da banca a recompra pública da TAP, caso houvesse incumprimento no pagamento das prestações de crédito.

Pela calada da noite, depois de uma compra do cão com o próprio pelo, o Governo em gestão de Passos Coelho dava garantias de que os privados não corriam riscos com a privatização da TAP. Qual foi exatamente o motivo para esta pressa? Ficou garantida a defesa do interesse público? Por que foi dado este passo e não se informou Bruxelas da assinatura de uma carta de conforto que poderia configurar uma ajuda de Estado encapotada?

Agora que Maria Luís Albuquerque se prepara para viajar para Bruxelas, talvez tenha oportunidade de esclarecer o sucedido em 2015, quando liderava a pasta das Finanças e foram decididos os termos da privatização. E agora que Pinto Luz tem de novo nas mãos o dossier TAP, talvez tenha oportunidade de esclarecer o motivo e os termos da carta de conforto que assinou enquanto membro de um governo que durou uns curtos 27 dias e que não tinha legitimidade para tomar este tipo de decisões. É fundamental, agora que vamos tendo notícias de visitas a Portugal de potenciais interessados na privatização da TAP, que haja transparência e escrutínio público no processo. Aquilo que justamente faltou, de forma chocante, em 2015.

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