As leis absurdas na formação de professores

O problema não nasceu este ano, não é “temporário”, e há muito que tarda um pensamento político-estratégico à altura da sua complexidade.

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Com a publicação do novo DL nº 51/2024, temos agora em vigor quatro decretos para regular a formação inicial de professores em Portugal, com a absurdidade de cada novo decreto contradizer os anteriores sem que nenhum seja revogado. É difícil para quem forma professores saber o que fazer neste momento: os mestrados em ensino não estão regulados em acordo com os Decreto-Lei n.º 112/2023, de 29 de Novembro, que procedeu à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 79/2014, de 19 de Maio, ainda em vigor, e que foi corrigido pelo Decreto-Lei n.º 23/2024, de 19 de Março. Que lei deve prevalecer quando os diferentes decretos preconizam modelos e condições de aquisição de habilitação profissional totalmente opostos? E estão todos em vigor!

Comecemos pelo novo sistema de bolsas, com o qual as instituições formadoras do Ensino Superior sempre concordaram. De acordo com o art. 8º, “o beneficiário da bolsa é obrigado a indicar como preferências, pelo menos, 20 códigos de quadro de zona pedagógica e 60 códigos de agrupamentos de escola ou de escolas não agrupadas.” Ora, como garantir que nesse universo alargado coexistam exactamente as escolas cooperantes com as quais as instituições de ensino superior têm protocolos de cooperação sem os quais não pode haver prática de ensino supervisionada (vulgo “estágio”)? As instituições de ensino superior têm uma rede estabilizada de escolas cooperantes e tem que ser nesta rede que se faz o estágio e é nesta rede que o bolseiro tem de ser colocado.

Por outro lado, as regras para atribuição de bolsas para os detentores do grau de licenciado em Educação Básica (art. 8º, n.º 1) faz pouco ou nenhum sentido, porque a rigor todos os graus de licenciado podem conduzir a um mestrado em ensino e não exclusivamente o de Educação Básica, que nem sequer corresponde à “satisfação de necessidades temporárias de pessoal docente em grupo de recrutamento deficitário ou em escola carenciada”. Nunca é explicada esta discriminação (positiva, mas sem deixar de ser uma discriminação) dos licenciados em Educação Básica face a todos os outros licenciados de onde podem surgir os candidatos à maior parte dos grupos de recrutamento e aqui, sim, incluindo os deficitários.

O art.º 7.º e seu ponto 4 será um desastre a vários níveis: “Os docentes e os investigadores referidos no presente artigo que não sejam detentores de habilitação profissional para a docência frequentam formação pedagógica realizada em centro de formação de associação de escolas, em articulação com instituições do ensino superior, com um mínimo de 100 horas.” Uma vez mais, entramos em total contradição com as condições excepcionais inscritas nos decretos em vigor e não revogados, por isso se pergunta, novamente, qual a lei que prevalece? Conhecendo todos os pareceres sobre esta matéria, nunca li que alguém sequer pensasse nesta hipótese que é tão absurda quanto a enunciada no DL n.º 112/2023. Para além da questão da equidade de formações, a “celebração de contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo com docentes do ensino superior e com investigadores doutorados com formação científica adequada” será um enorme problema jurídico e logístico que não sei como vai ser resolvido.

De notar que um investigador doutorado não é, à nascença do seu processo formativo, um potencial professor ou muito menos um investigador programado para ser professor. Não sabemos quem vai garantir essa formação de 100h, quem a vai supervisionar, quem a vai avaliar. Também ficamos sem saber como equilibrar a exigência de acreditação de quem vai assim obter a habilitação profissional para a docência com uma formação ad hoc de 100h versus aqueles que cumpriram um processo de formação de 120 ECTS, incluindo uma prática de ensino supervisionada, e se submeteram a prova pública para obtenção do grau de mestre.

Nada tenho contra investigadores doutorados. Podiam beneficiar dessa vantagem, como sempre aconteceu, num processo de acreditação da sua formação científica, mas teriam sempre, como fizemos até aqui, que se sujeitar ao processo específico de formação inicial, com as componentes educacionais, didácticas e formação profissional em condições iguais a todos os outros licenciados. Criar aqui situações de excepção, facilitando a obtenção da habilitação profissional sem garantir em nenhum momento que existiu no seu percurso formativo um momento de formação profissional (com supervisão de ensino), não faz qualquer sentido.

Em suma, vamos iniciar 2024-25 sem termos mestrados em ensino e suas condições de admissão reguladas em respeito aos três últimos decretos-lei em vigor e antinómicos entre si, sem termos reforço de financiamento do Ensino Superior que permita o urgente aumento de vagas para os mestrados em ensino que já estão a deixar dezenas de candidatos de fora em algumas disciplinas deficitárias, sem sabermos que tipo de formação excepcional vamos ter para os investigadores doutorados que queiram inverter o seu percurso e entrar numa nova carreira (duvido que sejam mais do que poucas dezenas…), sem sabermos realmente como vamos vencer o problema grave, cada vez mais grave, da falta de professores a médio e longo prazo. Compreendo que existam “medidas excepcionais e temporárias na área da educação” como o DL 51/2024, mas o problema não nasceu este ano, não é “temporário”, e há muito que tarda um pensamento político-estratégico à altura da complexidade do problema que vai inevitavelmente fazer ruir o nosso sistema educativo público e privado.

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