Dois palhetes para desenjoarmos dos tintos
Estão entre um rosé e um tinto, fazem parte da história, têm versatilidade gastronómica e ainda nos ajudam a fazer as pazes com o vinho. Viva o palhete! Viva o clarete!
Se ninguém consegue prever as tendências de consumo de vinho daqui por cinco anos (um problema bicudo porque não se muda de vinhas como se muda de padrões de vestuário), é certo que os vinhos mais frescos, mais leves, mais abertos de cor, menos extraídos, menos alcoólicos e menos manipulados do ponto de vista enológico vão ganhar terreno. Entre outras razões, isto é assim porque, por um lado, muitos consumidores estão enjoados dos vinhos pesados, alcoólicos e amadeirados (“vinhos-pesadelo” segundo Dirk Niepoort) e, por outro, precisam de brancos e tintos que tenham capacidade de ligação com as gastronomias exóticas que enchem as ruas das principais cidades do país.
É nesse contexto que – embora de forma tímida – começam a aparecer no mercado vinhos clarete e palhete. Os primeiros são feitos a partir de uvas tintas colhidas mais cedo e com uma enologia menos extractiva (vinhos com fruta primária, abertos de cor, menos álcool e taninos mais suaves); os segundos são criados com uvas tintas e uma percentagem de uvas brancas. Semelhantes aos primeiros, os palhetes podem distinguir-se por uma percepção de acidez mais elevada e por tons cromáticos mais abertos, tudo por causa das tais uvas brancas.
Nas adegas que se dedicam ao vinho de talha, os palhetes têm um nome peculiar: petroleiros. E, verdade se diga, temos provado alguns petroleiros de categoria.
Numa analogia primária, podemos dizer que um clarete e um palhete estão entre um rosé e um tinto, embora, verdade seja dita, palhete era o que muita gente fazia para consumo próprio e a partir de vinhas velhas, onde se misturavam castas tintas e brancas. De maneira que não estamos propriamente perante uma inovação. Estamos, isso sim, perante a recuperação de um conceito que dá jeito a toda a gente: aos produtores, que têm um perfil novo para apresentar; aos sommeliers, que podem brilhar perante os clientes; e aos consumidores que sentem algum enjoo de modas que nos foram impostas dos EUA.
O enólogo Paulo Nunes, que criou um clarete de categoria com a marca Dona Sancha (Dão), costuma dizer que quando está farto de tintos – e isso pode acontecer com alguma facilidade –, o clarete é a sua “salvação”. Lá está, porque a frescura, um carácter mais primário e certas notas vegetais dos claretes e palhetes ajudam a limpar da nossa memória os tintos pesados e, em simultâneo, adequam-se na perfeição a um conjunto de pratos portugueses e internacionais.
Estes vinhos, que dão muito jeito no Verão, tanto acompanham carnes como peixes, arrozes, massas ou uma infinidade de pratos das gastronomias asiáticas. E, melhor ainda, não é sacrifício algum atacar o segundo copo. Não enjoam. Desenjoam.
Em menos de uma semana, provámos dois palhetes que merecem destaque. Um, da AdegaMãe, na região de Lisboa, é novidade. O outro, da Quinta de São Bernardo, do Douro, não. Apesar da estreia, o vinho criado por Diogo Lopes é, de algum modo, o prolongamento de um trabalho com tintos mais leves (caso do AdegaMãe Tinto Atlântico), marcados pela frescura da região, ou, se quisermos, um piscar de olhos ao Medieval de Ourém, feito com Fernão Pires e Trincadeira, não obstante o peso da casta branca ser determinante (80 por cento do lote). Sim, a AdegaMãe está empenhada em levar a sério o conceito de tinto de Verano. Boa notícia.
O AdegaMãe Palhete 2023 novo vinho é feito com as castas Pinot Noir, Castelão (tintas) e Fernão Pires (branca), que fermentaram em conjunto. O resultado é um vinho que começa a agradar desde que cai no copo pelo facto de ter uma cor acerejada ou apetrolada e brilhante. Aromaticamente, está marcado pelos frutos vermelhos e pelas notas vegetais típicas das castas tintas.
Na boca, é um vinho espevitado, vegetal, frutado e leve, ideal para se começar uma refeição (com alguns fritos) e continuar com uma sardinhada clássica com tudo a que temos direito (batatas, tomate, pimento, cebola e pepino) ou, melhor ainda, um arroz de sardinha. É isso. Melhor ainda, cada garrafa custa 9 euros.
Já o Palhete Vale dos Enganos 2019, da Quinta de São Bernardo, tem um perfil mais senhorial, coisa que lhe deu o tempo, a região quente e a parafernália de castas que está numa vinha velha (Malvasia Fina, Malvasia-Rei, Rabigato e Gouveio) nas brancas, e Tinta Barroca, Touriga Nacional, Touriga Francesa, Tinta Francisca, Malvasia Preta e Tinta Roriz, nas tintas.
Descobrimos este vinho no hotel Six Senses Douro Valley e ficámos de queixo caído com a qualidade e a irreverência dos vinhos de uma marca pouco badalada, em particular de um espumante com idade, um rosé e um tinto de 2012 em garrafa de grande formato. Em breve se dará notícia dos vinhos e do evento em si.
Até o nome do palhete tem a sua piada. De acordo com Pedro Pinto, o vale tem esse nome porque, dada a sua orografia, as vinhas estão mais sujeitas a doenças (míldio e oídio), pelo que, segundo os antigos, umas vezes o vale produzia bem, outras não dava nada e, outras ainda, assim-assim. Donde, Vale dos Enganos.
Seja como for, estamos perante um vinho com alguma complexidade, misturando notas de frutos vermelhos e pretos e algo entre o mineral e o vegetal. A boca é marcada por uma suavidade que nos faz lembrar o carácter aveludado de alguns tintos do Dão. Se o palhete da AdegaMãe é jovem, este Vale dos Enganos (25 euros), com cinco anos, tem aquele mistério que só chega com o tempo, pelo que vai bem com uma carne estufada ou um peixe assado.
De resto, a proposta destes dois palhetes não é feita ao caso. Como gostamos de recomendar por aqui, nada como comprar uma garrafa de cada casa, juntar os amigos num almoço ou jantar de Verão e desatar a conversar sobre os dois perfis de palhete. É assim que se aprende. E é assim que desenjoamos um bocadinho dos tintos clássicos, que bem podem esperar pelo Outono.
Nome Palhete Vale dos Enganos 2019
Produtor Quinta de São Bernardo
Castas Field blend (vinhas velhas)
Região Douro
Grau alcoólico 13,5% vol.
Preço (euros) 25
Pontuação 90
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Com uma cor mais fechada para um palhete, temos aromas mais quentes – estamos do Douro – e a fazer lembrar frutos vermelhos e pretos. É na boca, por via da suavidade e do carácter aveludado dos taninos, que este vinho do Baixo Corgo encanta. Vinho com personalidade e capaz de se bater em grande com comida, como se de um tinto se tratasse.
Nome Palhete AdegaMãe 2023
Produtor AdegaMãe
Castas Pinot Noir, Castelão e Fernão Pir
Região Lisboa
Grau alcoólico 11% vol.
Preço (euros) 9
Pontuação 90
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Depois da cor aberta e brilhante, o que nos chama a atenção são os aromas primários de frutos vermelhos e as notas vegetais típicas da casta Pinot Noir e, também, do Castelão. Na boca, um vinho bastante seco, com o regresso da tal matriz vegetal e fresca por via da acidez. Será interessante ver como evolui em garrafa.