Por trás de uma política de opacidade, a Temu é uma das aplicações mais populares em Portugal

A plataforma chinesa está envolta em mistério e pouco se sabe sobre o seu modus operandi. Na UE, está debaixo de fogo por manipular os consumidores; na China, os vendedores estão a manifestar-se.

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A Temu é propriedade da PDD Holdings REUTERS/Florence Lo/Illustration
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Com menos de dois anos de operação internacional, a Temu já cresceu para 49 países, Portugal incluído, e só no primeiro semestre deste ano registou vendas no valor de 20 mil milhões de dólares (18 mil milhões de euros). A plataforma chinesa, que promete vender tudo, continua a crescer a uma velocidade estonteante, ameaçando ultrapassar a rival Shein, sem estar também isenta de polémica. Nesta semana, centenas de vendedores do site de comércio electrónico protestam em Cantão, no Sudeste da China, contra as políticas da empresa, cujos anúncios invadiram as redes sociais.

Foi precisamente pelos anúncios agressivos nas redes sociais que a Temu cavalgou para o sucesso, sustentada por uma comunidade de influencers que mostram o que compram em vídeos aliciantes completados com códigos de desconto. Brinquedos, utensílios para a cozinha, decoração e até roupa: a promessa é que se encontra tudo, a preços baixos, claro.

“Compre como um bilionário”, afiançam no slogan, apresentado ao lado do vibrante logótipo laranja, que figura em primeiro lugar na Google Play Store como a aplicação mais descarregada neste momento em Portugal. Na Apple Store do Iphone, está na quarta posição da tabela.

A experiência de utilização é intuitiva, mas simultaneamente desafiante. Assim que se abre a interface da aplicação, saltam anúncios a cupões, que prometem até 100% de reembolso. Depois, surgem artigos em promoção de inúmeras categorias — até papel higiénico se encontra. Aliás, numa rápida pesquisa, é difícil encontrar uma peça que não esteja em promoção ou quase esgotada. O algoritmo é eficaz e basta uma visita à plataforma para que esta comece a sugerir artigos que vão ao encontro dos gostos e necessidades de cada um.

A solução de marketing agressivo não é novidade, e já o AliExpress da Alibaba adoptava a mesma técnica. Mas ninguém cresceu tão rápido quanto a Temu, pensada para o mercado internacional. A nova plataforma nasceu em 2022, no seio da PDD Holdings, que se nomeia como “um grupo agrícola”, com um pé no comércio electrónico, numa cópia do modelo de negócio da Amazon que funciona com vendedores independentes —​ de acordo com o Financial Times, já serão mais de 13 milhões de revendedores.

Desconhece-se quantos utilizadores registados na Temu existem mundialmente, mas só na China serão mais de 870 milhões, e na União Europeia estimam-se que sejam mais de 75 milhões os utilizadores mensais.

São números esmagadores para a dimensão real da empresa. De acordo com o mesmo jornal, a Temu começou com apenas 12.992 postos de emprego, uma fracção dos 1,5 milhões de funcionários da Amazon. E se a Alibaba, dona da concorrente AliExpress, tem mais de mil armazéns espalhados pelo mundo, a PDD resume as suas instalações a escritórios sobretudo dedicados a informática e software, ocultando quantos armazéns tem e onde estão localizados.

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Daniel Rocha/Arquivo

Aliás, à semelhança da loja chinesa Shein, que prima pelo secretismo na operação, a PDD tem uma política de opacidade, com problemas de direitos humanos a serem levantados na cadeia de fornecedores. A mesma investigação do Financial Times dá conta de que os funcionários utilizam pseudónimos e pouco sabem sobre as suas equipas, constituídas por jovens “escolhidos pela sua pobreza ou pelas dívidas”, o que faz com que tenham motivação para trabalhar longas horas. “Os funcionários têm acesso a todas as informações necessárias para uma colaboração eficaz entre equipas e para desempenharem as suas funções”, justificava a PDD em Março deste ano.

Milhões em compras e acusações de manipulação

O homem por trás do negócio é Colin Huang, um antigo engenheiro da Google, que fundou secretamente a Pinduoduo em 2015. O projecto começou num misto entre comércio electrónico e gamificação, com Huang a desenvolver novas versões de videojogos populares, como o Farmville ou o Candy Crush, mas que envolviam micropagamentos e cupões, eficazes para viciar os utilizadores. Caso regressassem frequentemente à aplicação ou a recomendassem a amigos, ganhavam mais pontos.

Três anos depois da fundação, em 2018, a Pinduoduo já tinha 300 milhões de clientes e estava cotada no Nasdaq, conseguindo angariar 1,7 mil milhões de dólares (cerca de 1,5 mil milhões de euros) em acções. O vice-presidente, David Liu, antigo banqueiro da Goldman Sachs, descrevia o modelo de negócio no seu podcast como “baseado no impulso”. A maioria dos clientes, explicava, entrava na aplicação apenas para passar tempo, e o algoritmo, bem como as ofertas constantes, encorajava a compra.

Foi só em 2020 que deixaram a versão de videojogo e passaram a vender algum material de promoção “diverso” e não especificado. No ano seguinte, o fundador Colin Huang afastou-se do negócio para se dedicar à investigação científica, sendo substituído por dois directores executivos, Chen e Jiazhen Zhao, que compraram um dos fornecedores da empresa para obter maior controlo na distribuição. Uma vez mais, pouco se sabe sobre estas transacções. Certo é que a empresa passou, desde então, a reportar lucros de milhões, que garantiu estarem a ser aplicados em “iniciativas de tecnologia agrícola.

De 2021 aos dias de hoje, não voltaram a detalhar no que estão a ser aplicados os lucros das vendas, que só no primeiro semestre deste ano ultrapassaram os 18 mil milhões de euros. Apesar não ser claro de onde vem todo o dinheiro, sabe-se que a percentagem que cobram aos vendedores tem vindo a subir, e esse é um dos motivos dos protestos desta semana na China. O jornal Caixin citou um dos manifestantes, um retalhista de vestuário, que afirmou que as multas da Temu e os fundos reservados para os litígios pós-venda ascendem a cerca de 35% das suas vendas totais: “A margem de lucro bruta que a Temu nos dá com os seus preços é entre 10% e 20%, por isso, depois das multas, ‘sangramos’.”

A empresa diz estar a tentar “encontrar uma solução” junto dos comerciantes, ao mesmo tempo que lida com outros problemas internacionais. Face ao crescimento, não demorou até que surgissem os primeiros problemas com a concorrência e, no último ano, a Temu e a Shein têm-se enfrentado numa batalha legal nos EUA, país onde a primeira ultrapassou a rival nas vendas, de acordo com a Bloomberg.

As acusações são mútuas, com a Temu a acusar a Shein de “bullying e intimidação” a fornecedores na China, “ao estilo da máfia”, para tentar interferir com o negócio, chegando ao ponto de confiscar os telemóveis dos empresários durante reuniões de dez horas para tentar obter informação confidencial sobre o negócio da PDD. Isto porque alguns dos fornecedores serão comuns a ambas as plataformas.

Por sua vez, a Temu também está envolvida em polémica na União Europeia, com 17 associações de consumidores, incluindo a portuguesa Deco, a apresentarem queixas às autoridades nacionais contra a plataforma “por não proteger os consumidores e por utilizar práticas ilegais de manipulação, com padrões obscuros”. Além disso, diz a queixa da associação portuguesa, a loja falha em “fornecer informação relevante sobre os produtos vendidos”, o que leva os consumidores a “gastarem mais do que inicialmente desejariam”.

Desde este ano, a Temu passou a ser considerada uma plataforma online de grande dimensão (com a sigla inglesa VLOP, para "very large online platforms", que identifica as que ultrapassam os 45 milhões de utilizadores) na UE, o que faz com que enfrente regras mais rigorosas para a regulação de conteúdos ilegais e nocivos, bem como para a venda de produtos de contrafacção na plataforma. “Até ao final de Agosto de 2024”, as empresas visadas tinham quatros meses para “adoptar medidas específicas para capitar e proteger os utilizadores online, incluindo os menores.”

Resta saber o que já foi feito e se vão ser cumpridas as regras da transparência com a apresentação de relatórios semestrais “sobre as decisões de moderação de conteúdos e a gestão de riscos”, rastreando também todos os fornecedores da plataforma.

Ao PÚBLICO, em Fevereiro deste ano, a investigadora Lígia Carvalho Abreu, especialista em direito de moda, explicava que pouco se pode fazer para responsabilizar estas plataformas no que toca aos direitos de autor das peças vendidas, frequentemente cópias de outras marcas. “Em termos legais, não podemos exigir nada porque a China tem soberania para criar a sua lei. Mas os países europeus podem, a nível das organizações do comércio, tentar criar leis que tentem controlar estas actividades”, declarava.

A UE tem vindo a apertar o cerco, mas, na prática, ainda pouco mudou, e a Temu continua a crescer à custa das pechinchas e de pechisbeques, causando preocupações ambientais, de segurança e de concorrência. A mudança fica também do lado de consumidor, que continua a ter poder de decisão.

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