Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira: Todos os livros são uma viagem

Há uma sala multiusos que é essencial para a conexão com os utilizadores da biblioteca, promovendo a aproximação das pessoas e servindo também de ponto de encontro.

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"Os livros aqui são muito requisitados", contou Mónica Gomes, diretora da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira JOÃO DA SILVA
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Os monges gravavam em pequenos blocos de madeira de bétula os caracteres da escrita tibetana, invertidos, cobriam-nas com uma tinta feita de um preparado à base de fuligem resultante da combustão de excremento de iaque, e pressionavam depois esses blocos sobre o papel.
Joaquim Magalhães de Castro, em Viagem ao Tecto do Mundo – O Tibete Desconhecido

“As folhas assim impressas eram agrupadas entre duas placas de madeira retangulares e depois cuidadosamente arrecadadas em caixas forradas a seda. Num país de iletrados, o livro era um bem precioso e caro, chegando a custar o equivalente ao valor de doze iaques, pelo que se tratava de um produto reservado à aristocracia e às ordens monásticas. Durante a anexação do Tibete e nos anos da Revolução Cultural Chinesa, destruíram-se inúmeras bibliotecas. As folhas dos livros foram queimadas e as capas reutilizadas, como tacos de madeira para o soalho das novas casas edificadas.”

Na obra Viagem ao Tecto do Mundo – O Tibete Desconhecido, Joaquim Magalhães de Castro recorda alguns episódios históricos do longínquo país que visitou. O trecho que aqui partilho remete-nos para o tema que a Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira está a trabalhar este ano: a liberdade. “Ao longo do ano, temos sempre programação regular no âmbito cultural nos diversos equipamentos que temos em Santa Maria da Feira, seja na biblioteca, no Cineteatro ou no Europarque. São equipamentos que têm programação própria, mas que trabalham de forma integrada sobre um tema comum, e que este ano é a liberdade”, apresentou Mónica Gomes, diretora da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira.

Logo no início da visita, a bibliotecária mostrou-me um mural. Na parede, lia-se: “O que é para ti a Liberdade?”. Quase cobrindo a frase, espalhados por toda a parede, havia dezenas de post-it com respostas escritas a azul. Em cima de uma mesa, um pequeno cartaz-convite: “Deixe uma palavra, um pensamento ou uma expressão representativa sobre o que significa liberdade. Registe-a num post-it e cole-o no mural. Use o lápis azul da censura para se manifestar.”

Partilho as mensagens de alguns post-it:

“Amar sem julgamento!”

“Dizer não!”

“Poder errar”

“Falar ao vento sem medo nem censura”

“Aprender sem restrições”

“É sermos chamados a participar, a observar, a estar atentos, a pensar a ler, a escrever e a debater…”

Ler, escrever, aprender, falar, debater.

“Os livros aqui são muito requisitados, fruto da nossa política de aquisições. Assim que sai algo novo que os nossos leitores desejam, consideramos as suas sugestões, e, após aprovação, procedemos à compra. Depois, há uma lista de reservas. Já chegámos a ter mais de vinte reservas para um livro que está na berra. Algumas vezes, adquirimos mais do que um exemplar, pois os outros polos também nos dão feedback sobre os livros mais procurados e faz sentido que também os tenham para disponibilizar aos leitores”, detalhou a diretora.

Sobre a escolha de Viagem ao Tecto do Mundo – O Tibete Desconhecido, Mónica justifica assim: “Eu decidi escolher uma narrativa de viagem de um autor concelhio, Joaquim Magalhães de Castro. Poderia ter sugerido qualquer outro livro deste autor, pois todos são muito interessantes e permitem-nos conhecer geograficamente, historicamente e culturalmente [uma região], além de sentir as emoções das suas viagens. Estes livros permitem-nos explorar países desconhecidos e culturalmente interessantíssimos. Acho que todos os livros são uma viagem, e por isso achei que seria uma boa abordagem escolher este livro, porque Santa Maria da Feira também nos permite viajar no tempo. Em janeiro, na Festa das Fogaceiras, viajamos até à nossa identidade e tradições, mais exatamente à história das fogaceiras, uma tradição com mais de 500 anos. Em maio, temos o Imaginarius, o Festival Internacional de Teatro de Rua, um mundo imaginado espetacular. Em agosto, a Festa Medieval permite-nos perceber como viviam as pessoas na Idade Média, saborear iguarias da época, ver saltimbancos, músicos, malabaristas e cuspidores de fogo, enfim, viajar até à época medieval. Por fim, em dezembro, na altura do Natal, viajamos até ao mundo encantado de Perlim, um lugar de fantasia, com príncipes e princesas, onde somos convidados a sonhar e a viver a magia do Natal”.

A propósito, um trecho de Viagem ao Tecto do Mundo – O Tibete Desconhecido:

“Vi na Praça de Barkhor um grupo de curiosos reunidos em redor de um contador de histórias que, com a ajuda de um flautista e de uma cantora, relatava as façanhas do rei Gesar, herói da epopeia tibetana, transportadas para o universo musical de tradição oral. (…) A poucos metros, numa tenda improvisada, monges faziam soar tambores, cornetas e címbalos. Encostado a um pilar, um velho, aparentemente desligado de tudo e de todos, gravava em pequenas placas de xisto Om Mani Padme Hum – o mantra mais popular entre os budistas. O Tibete tem uma longa tradição de jograis e músicos de rua, que percorrem as vilas e cidades do país, actuando nos mercados e nas praças em frente aos templos. Agrupam-se em duos ou quartetos, tocam guitarras de quatro cordas feitas de tripa de borrego enquanto cantam e, por vezes, estes músicos e cantores fazem-se acompanhar por acrobatas e dançarinos.”

A Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira tem uma sala multiusos que é essencial para a conexão com os utilizadores da biblioteca, promovendo a aproximação das pessoas e servindo também de ponto de encontro. Neste espaço, realizam-se workshops de tricot, costura, gastronomia e artes decorativas, além de espetáculos para bebés. Paralelamente, na sala de exposições, promove-se a educação pela arte: depois de uma visita guiada à exposição, é realizado um workshop relacionado com o tema exposto. A biblioteca é, portanto, muito mais do que apenas livros.

“Santa Maria da Feira é uma cidade criativa de gastronomia, e dentro desse cluster há um conjunto de atividades que nos propusemos desenvolver. Estamos a implementar, por exemplo, um programa de alimentação saudável nas escolas e, complementarmente, vamos trabalhar com crianças e jovens, divididos em quatro faixas etárias, para criar um clube de gastronomia, que alie os conselhos de alimentação saudável de um nutricionista com a orientação de um chef que vai apresentar receitas dessa tipologia, sempre utilizando alimentos locais e sazonais. Será sempre um chef diferente, uma nutricionista diferente e propostas diferentes”, esclareceu Mónica Gomes.

“Até ao primeiro semestre do ano, acolhemos chefs de Santa Maria da Feira, que nos apresentaram propostas para o público mais adulto, onde se potenciaram os produtos locais e se desconstruíram algumas receitas tradicionais. Agora, no segundo semestre, vamos explorar a ‘diversity food’. Observando os dados do gabinete de imigração no concelho, verificámos qual é o maior grupo de imigrantes e de que país são oriundos e vamos organizar workshops, convidando um desses imigrantes para cozinhar. Não queremos um chef, mas um cidadão comum, por exemplo, da Ucrânia, do Brasil, da Venezuela, para realizar um workshop de comida tradicional do seu país de origem. Claro que aqui vamos tentar complementar com literatura, disponibilizando livros desses países, talvez juntemos até música desses países. Será um programa cultural diferente”, concluiu a diretora.

Mais uma vez, falamos de viagens.

Aproveitemos a boleia de Joaquim Magalhães de Castro para viajar, mais uma vez, ao Tibete:

“Algumas destas grutas, verdadeiros buracos negros, estavam interligadas e foi-me difícil imaginar como é que se conseguia chegar às que se situavam nos níveis mais elevados, algumas delas escavadas a várias dezenas de metros do solo. Vistas de longe, surtiam um efeito espetacular e faziam lembrar as mais diferentes formas: uma parecia uma caveira; o conjunto de outras três dir-se-ia uma boca e um par de olhos de um monstro desenhado no rochedo.”

As grutas, escavações e buracos sugerem figuras grotescas num ambiente misterioso, porventura assombrado. Pergunto-me, enquanto viajo até às montanhas que rodeiam Purang, no Tibete da China, graças às palavras de Joaquim: seriam aqueles buracos passagens secretas ou refúgios de eremitas, monges e bruxas que os utilizavam para retiros espirituais, meditação ou práticas de bruxaria? Este cenário transporta-me para o imaginário da Idade Média, recheado de histórias fantásticas, lendas e mistérios indecifráveis, um ambiente encantado e místico como aquele que se desenha, todos os anos, durante a grande Feira Medieval em Santa Maria da Feira, um evento que leva os visitantes numa viagem ao passado, a uma era de cavaleiros, damas, mistérios e feitiçarias onde a história e os mitos medievais se cruzam com a realidade.

“Todos os livros são uma viagem”, disse Mónica Gomes.

Assim queiramos viajar.

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​O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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