Biblioteca Municipal de Setúbal: “O livro é um mudo que fala”
Todos os degraus tinham palavras, cada passo era um convite a refletir. “Aqui e na escada da vida”, cogitei antes de ler a frase-mote do penúltimo degrau: “# a biblioteca liga mundos”.
“Dali se vê o rio, em toda a sua extensão líquida e serena, rio compacto, parece sólido visto dali, parece um terreno azul, dá vontade de pisar, passar com a mão, fazer uma festa, apalpar (…) rio, azul e imenso, não há outro igual, nem sequer parecido.”
Alice Brito, As mulheres da Fonte Nova
Às 7h32, estacionei o carro a poucos centímetros do Sado e inspirei o ar da manhã. A meia dúzia de metros, um pescador pressionava repetidamente um peixe dentro de um saco de plástico. "Nunca fiando, já muitos me fugiram depois de estarem fora de água não sei quanto tempo", justificou ao perceber que o observava. Anui. Percebo pouco de peixe e ainda menos de pesca. Depois de lançar várias vezes a linha ao rio e de a puxar sem apanhar nada no anzol, o pescador afastou-se. "Dei-lhe azar", concluí.
Entrei na Biblioteca Municipal de Setúbal às nove em ponto. À minha espera, no topo da escadaria, estava Lígia Brito Águas, a diretora. No primeiro degrau, lia-se “Igualdade Consciência”, no segundo, “Pesquisa Reflexo”. Todos os degraus tinham palavras, cada passo era um convite a refletir. “Aqui e na escada da vida”, cogitei antes de ler a frase-mote do penúltimo degrau: “# a biblioteca liga mundos”. Na parede atrás de Lígia, um retrato de Bocage, figura maior de Setúbal, e as palavras imortais do padre António Vieira: “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive.”
Após a visita guiada, sentámo-nos para conversar. Carla Guerreiro, vice-presidente da Câmara Municipal de Setúbal e vereadora dos pelouros da Educação e Bibliotecas, Recursos Humanos e Ambiente, partilhou comigo a visão da autarquia: “A biblioteca é uma das vertentes mais importantes da nossa estratégia cultural. As pessoas visitam-na diariamente para requisitar livros, ouvir música, ver teatro, recitar e ouvir poesia e consultar documentos históricos e outros que são importantes testemunhos da história da cidade e da sua identidade.”
“Cidade pátria de muito desejo e desamor, pátria de muita luta e muita dor. Até língua própria tinha, com os erres a dobrarem-se ali num ângulo da gorja. Quem quiser sentir esta cidade tem de falar a sua língua. Os lábios têm de tentar arranhar os erres, os erres da sardinha, do carapau, e do xarroco, que se escondem algures entre o céu-da-boca e a garganta; a memória deve fixar as interjeições e os tiques linguísticos nasalados que cortam ou amachucam, por vezes, as últimas sílabas. Mesmo que não se consiga uma imitação perfeita já é uma tentativa de entendimento, um passo em direção à alma única que se esconde nesta pronúncia singular, neste texto expressivo que a cidade recita há já séculos e que ninguém ouve, ou quando ouve é para troçar, esse esforço, esse arranhão do pio. Esta pronúncia, esta especial coreografia da fala, é da cidade nascida na cidade. Respeito, respeitinho, porque normalmente a cidade-pronúncia é de várias gerações com genealogias de mar, de grão salino, portanto de sangue de um azul que o rio emprestou”, desenvolve, com brilho, Alice Brito em As mulheres da Fonte Nova, a obra escolhida pela “comissão” da Biblioteca Municipal de Setúbal para representar a cidade nesta iniciativa.
Nascida em Setúbal em 1954, Alice reside na cidade até hoje. O livro é uma narrativa sobre “mulheres de armas, realista e sem concessões” que viveram na dura realidade da cidade de Setúbal nas décadas de 30, 40, 50 e 60 do século XX. Um trecho representativo: “Tinham-lhe sempre dito, ou talvez melhor, sugerido e ensinado, que as mulheres não exigem, pedem; que as mulheres não se dão, entregam-se; que as mulheres não têm querer, obedecem; que nada impõem, humilham-se. Sentia agora que nada iria pedir, que não se iria entregar e muito menos obedecer ou humilhar-se.”
Lígia Maria Águas trabalha na biblioteca há 28 anos e é diretora há oito. “É uma paixão, embora não o tenha sido de início. Licenciei-me em História, fui para Ciências Documentais e escolhi Arquivo. Trabalhei na Torre do Tombo, mas o amor trouxe-me até cá. E pronto, foi um bichinho.” Valeu a pena? “Claro! Nós também vamos crescendo. Continuo a gostar de arquivo, mas a biblioteca é outra coisa. Aqui, procuro cumprir a missão de uma biblioteca pública, mas tenho de ir mais além. A biblioteca já não é o que era há 20 anos. Às vezes, as pessoas queixam-se do barulho, porque temos atividades com música e canto. Só que a biblioteca agora é tudo, é trabalho, cultura e lazer. É dos espaços mais democráticos que existem. Aqui, é tudo gratuito e todas as pessoas podem, em pé de igualdade, usufruir dos nossos serviços. Custa-me ouvir dizer que as bibliotecas já não fazem sentido porque podemos comprar livros em todo o lado. Não é verdade, nem toda a gente pode comprar livros. E aqui, além dos livros, temos equipamentos informáticos e Wi-fi grátis. Há muitas crianças que vêm muito durante a semana com as escolas e o boom de imigração trouxe pessoas com outra forma de estar e outra cultura, nomeadamente ingleses, ucranianos e brasileiros que vêm com os pequenitos ao fim da tarde. E, ao sábado, começamos a ver jovens casais portugueses com as suas crianças. A secção infantil nunca teve tanta gente como há ano e meio!”, exultou a diretora. E os mais velhos? “Para os mais idosos, este espaço é um refúgio. E vêm muitos.”
O auditório tem reservas até 2025 para apresentações de livros, tertúlias, palestras, exposições, teatro, entre outras atividades. “Nós tínhamos uma atividade por sábado, agora temos duas ou três. Há muito mais pessoas a escrever, a pintar e a fazer outras artes. Nós oferecemos a possibilidade aos autores locais de utilizarem a biblioteca para apresentarem os seus livros. Em Setúbal, há muitas pessoas a escrever poesia.”
Muitos certamente inspirados em Bocage, obviamente referenciado por Alice Brito em As mulheres da Fonte Nova: “O Bocage, profeta da liberdade, o poeta maior, próximo, íntimo, inatingível.”
“Pôr os jovens a ler é, em parte, tarefa da família e da escola. Se houver livros em casa, se os pais tiverem hábitos de leitura de livros e jornais, se nos aniversários oferecermos livros e os levarmos às bibliotecas, estamos a incentivá-los à leitura. Em Setúbal, há livros em todas as escolas e os professores promovem atividades de leitura, convidam autores e fazem feiras do livro. São grandes incentivos. Só que o telemóvel é um concorrente do livro e os jovens passam muitas horas nas redes sociais”, concluiu, encolhendo os ombros, Celeste Paulino, diretora do departamento de Educação e Bibliotecas de Setúbal.
Os grupos de leitura são umas das formas de promoção e dinamização de leitura. “Organizo um grupo de leitura há 28 anos, onde lemos um livro por mês. Há três ou quatro pessoas que que se mantêm desde o início do grupo, mas há muita rotatividade. Agora, por exemplo, temos um italiano, reformado, que lê em português, embora com dificuldade, e um irlandês que utiliza um dispositivo eletrónico onde traduz para inglês”, explicou Lígia. E gente nova? “Há um grupo de leitura juvenil e outro infantil na Biblioteca de Azeitão, cada um com cerca de 20 jovens. E outro grupo juvenil no polo da Bela Vista, em Setúbal, que está a crescer”, respondeu.
Antes de deixar a biblioteca, inscrevi-me como leitor (n.º 29.010) e requisitei As mulheres da Fonte Nova. “Uma das coisas que nos faz ter esperança é que o empréstimo domiciliário tem vindo sempre a aumentar!”, rematou, com orgulho, Lígia Brito Águas.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990