Já se sabe que a arte, seja ela qual for, da música à pintura, passando pela literatura, pode contribuir para o bem-estar, mas pode também ajudar a recuperar na doença. Tudo está estudado e cientificamente comprovado, garante Carina Freitas, pedopsiquiatra e uma das interveniente nas II Jornadas de Medicina Narrativa, que decorrem nesta sexta-feira e sábado, em Lisboa, e cujo tema é “Entre a vida e a morte: as histórias que nos curam”. Margarida Lobo Antunes, da organização, defende que a medicina narrativa contribui para melhorar a vida não só dos doentes, mas também dos profissionais de saúde.
Ao PÚBLICO Margarida Lobo Antunes, coordenadora do Departamento da Criança e do Adolescente no Hospital Lusíadas Lisboa, recorda que antes da ciência exacta em que se tornou a medicina era uma ciência humana, resultado de conversas do médico com o doente. “Abordagem pelo toque, palpação, colheita da história do doente”, enumera, acrescentando que, com a evolução, “a medicina, que era uma arte, foi transformando-se numa ciência pura e dura, começando a desligar-se da sua parte humanística”. Hoje, com a inteligência artificial (IA) e a possibilidade de as máquinas poderem superar o médico no diagnóstico — “o computador consegue detectar coisas que o olho humano não consegue” —, qual será o papel deste profissional?
A resposta pode estar na medicina narrativa, acredita: “Conhecer o doente é mais importante do que conhecer a doença. A medicina está cada vez mais tecnológica, com parte burocrática, mas não há outra maneira de a fazer se não for com empatia e compaixão.” Por isso, neste encontro internacional — para o qual foram convidados vários especialistas nesta área, como Harvey Max Chochinov, da International Faculty University of Manitoba, autor de Dignity Therapy: Final words for final days, em 2012; e Artur Frank, da University of Calgary e autor de The Wounded Storyteller: Body, Illness and Ethics, em 1995 — a reflexão será sobre uma ciência com uma visão mais holística do doente.
Margarida Lobo Antunes explica que o objectivo deste encontro é “explorar a importância das histórias e das diversas áreas das humanidades” e como é que a medicina narrativa pode contribuir para uma “abordagem clínica mais humanística”. Nesta sexta-feira, no auditório do Hospital Lusíadas Lisboa, vão ser debatidos temas como o papel das histórias e das memórias, da música e do canto para o bem-estar e para a melhoria do estado de saúde do doente.
Carina Freitas vai estar no mesmo painel que a cantora Luísa Sobral, para falarem sobre o papel da música no bem-estar e saúde do doente. A médica, com uma especialização em Musicoterapia Avançada e Suas Aplicações, pela Faculdade de Medicina da Universidade Autónoma de Madrid, explica ao PÚBLICO que esta é uma área reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS). “Não basta dizer ‘não sei o quê faz bem’, é preciso ser mais específico e a música (vários comportamentos musicais como a audição e o canto) tem benefícios para o bem-estar e reabilitação da doença”, declara. E dá exemplos como as mães que cantam para os seus bebés, para que estes relaxem, e como, durante a infância, o cantar contribui para estimular as crianças a desenvolverem a memória, a fala e até a gramática. Do mesmo modo, participar num coro pode contribuir para regular as emoções, melhorar a função respiratória ou aliviar o stress, além de combater a solidão.
Evitar burnout profissional
“Melhora o humor, diminui sentimentos depressivos; como actividade social contribui para o sentimento de pertença”, resume Carina Freitas. Mas há mais: A música pode ser usada para “diminuir a dor”. Quando o doente está hospitalizado, por exemplo, a música pode ajudar a diminuir os sentimentos negativos; ou pode ser usada como audioanalgésico, ou seja, pode ser uma distracção para diminuir a percepção da dor na realização de um exame como a endoscopia ou uma punção venosa, acrescenta, lembrando ainda a sua função hipnótica.
A musicoterapia existe em alguns hospitais, mas fazem falta mais profissionais, sobretudo os especializados nesta área, não só em ambiente hospitalar, mas também em espaços comunitários, diz Carina Freitas. “Falta regulamentar a profissão”, lamenta, reconhecendo que pode haver um “preconceito em Portugal”, mas que a relação das artes com a medicina é uma área bastante desenvolvida em países anglo-saxónicos e reconhecida pela OMS. “Estive no Canadá e nos EUA, que investem milhões na música e neurociências, porque vêem que a música pode ser uma ferramenta [para auxiliar] o neurodesenvolvimento, por exemplo, em doenças neurodegenerativas”, testemunha, dando como exemplo as doenças de Alzheimer e Parkinson.
A neuropediatra refere ainda a música, ou outra forma de arte, como prescrição social — ou seja, o médico de família em vez de receitar um fármaco, aconselha o doente a participar num coro ou outra iniciativa na comunidade, de maneira a não se sentir isolado. “As artes na saúde são um campo emergente”, conclui. E não só para os doentes, mas também para os profissionais de saúde, defende Margarida Lobo Antunes. “O ser humano é um ser criativo e o contacto com as humanidades ajudam-nos a restaurar o bem-estar e equilíbrio. Ir ao teatro ou ao cinema tem o efeito de recarregar baterias”, diz, fazendo referência à situação de burnout de tantos profissionais.
No sábado, os temas que vão ser tratados na jornada prendem-se com o poder curativo da arte, da poesia e do espaço envolvente; assim como sobre a importância da consciência e da autotransformação das histórias de vida. Margarida Lobo Antunes, que lecciona Medicina Narrativa (1.º ano) e Medicina Narrativa e Bioética (5.º ano), no curso de Medicina da Universidade da Beira Interior, dá o exemplo do que faz com os seus alunos: analisar quadros, esculturas ou poesia, o que lhes dá “abrangência cultural”. E diz: “Eu posso não ter vivido na favela, mas posso ter lido sobre isso e assim posso compreender melhor a pessoa que tenho à minha frente.”
A especialista defende que o médico “ouça e escute” o doente. “Escutar a sua história vai ajudar a tratá-lo melhor.” As “humanidades médicas” devem fazer parte da formação dos futuros profissionais de saúde, porque a arteterapia ajuda o doente, mas também o médico, que “tem de ter um escape”, repete, defendendo uma visão mais holística do doente. E conclui: “A arte ajuda a viver uma vida melhor. [Introduzir as humanidades] é o voltar às origens [da medicina], num mundo demasiado científico e tecnológico. Temos de estar preocupados com o rumo que a medicina vai levar. Com a IA porque não é o computador, que faz o diagnóstico, que vai dar a mão ao doente, mas o médico.”