Em vez de fármacos, médicos no Alentejo vão prescrever cultura

Especialistas nacionais e internacionais reúnem-se em Évora para partilhar experiências de prescrição médica de actividades culturais e artísticas para melhoria dos níveis de saúde e bem-estar.

Foto
O clínico prescreve cultura, mas não decide com o doente o que este fará Cottonbro studio/pexels
Ouça este artigo
00:00
05:26

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

É já na próxima semana que cerca de oito dezenas de médicos em oito municípios do Alentejo Central vão passar a prescrever cultura. A iniciativa insere-se no âmbito do Transforma – Programa para Uma Cultura Inclusiva do Alentejo Central e, nesta quinta-feira, no Teatro Garcia de Resende, em Évora, decorre uma conferência internacional onde serão partilhadas as experiências dos países escandinavos e também do Reino Unido, sobre como é que a arte pode contribuir para a construção de comunidades saudáveis.

Quantas pessoas vão ao centro de saúde porque se sentem sozinhas em casa?, pergunta a psicóloga clínica Patrícia Claudino, representante do Ministério da Saúde no Núcleo de Supervisão Técnica do distrito de Évora, e uma das responsáveis pelo projecto de Prescrição Cultural. Este foi pensado para “utentes com características muito específicas”, contextualiza Ana Isa Coelho, técnica superior na Comunidade Intermunicipal dos Municípios do Alentejo Central (CIMAC), ao PÚBLICO. São pessoas com problemas de saúde mental ligeiros ou moderados, de todas as idades.

Em termos práticos, a pessoa dirige-se ao seu médico de família — ao todo são cerca de 80, em oito municípios (Alandroal, Arraiolos, Borba, Estremoz, Évora, Montemor-o-Novo, Portel e Redondo), que tiveram formação para o efeito — e este avalia se o que o doente precisa é de ser medicado ou se o que precisa é de ter actividade cultural. Os pacientes não deixarão de ser medicados e acompanhados por médicos no que diz respeito às questões de saúde, passam é a ter esta alternativa nos casos em que a prescrição cultural seja uma possibilidade, salvaguarda Ana Isa Coelho. “O médico não impõe, mas propõe”, declara.

E a intervenção do médico termina aí, continua Patrício Claudino, responsável pela metodologia, em conversa com o PÚBLICO. De seguida, o utente é contactado por um assistente social que, através de uma entrevista, vai ver que interesses tem, que respostas existem no município, se tem condições de se deslocar, etc. Há actividades que podem ser levadas a cabo com regularidade, por exemplo, uma aula de dança ou de música; e outras são esporádicas, como um ciclo de teatro ou de cinema.

Ana Isa Coelho diz que mais municípios gostariam de aderir, mas que ou não têm oferta cultural suficiente ou transporte para dar resposta às pessoas. Contudo, foi feito um manual que pode ser útil a qualquer autarquia do país, adianta, lembrando que este trabalho envolveu a Administração Regional de Saúde do Alentejo e o Agrupamento de Centros de Saúde do Alentejo Central, além dos agentes culturais.

No final, o projecto será avaliado pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa, acrescenta a técnica da CIMAC. As experiências que serão partilhadas durante a conferência desta quinta-feira, em Évora, revelam que a prescrição cultural pode ajudar a reduzir a toma de fármacos, bem como “oferecer significado à vida dos participantes”, diz Patrícia Claudino. “Contribui para o bem-estar da pessoa”, acrescenta.

Atacar em várias frentes

A psicóloga clínica, que lamenta a falta de profissionais da sua área nos centros de saúde, defende: “Estes recursos bem oleados podem desbloquear barreiras da forma como olhamos e trabalhamos a saúde mental.” A especialista recorre aos exemplos do Reino Unido e da Dinamarca. No primeiro, existe um programa a decorrer desde 2019, em que estão envolvidos 3750 médicos, e os estudos apontam para a redução na toma de medicamentos, logo, uma redução dos custos no Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla britânica). No segundo, foi documentado que pessoas que estavam em desemprego de longa duração voltaram ao mercado de trabalho em diferentes áreas, porque tiveram experiências diferentes quando lhes foi prescrita cultura.

Contudo, este é um projecto que não visa apenas o bem-estar dos utentes, mas também a promoção da oferta cultural dos municípios. O Transforma Programa para Uma Cultura Inclusiva no Alentejo Central é coordenado pela CIMAC, que é composta por 14 municípios e visa, em três anos — o projecto termina este ano —, promover o acesso generalizado à cultura e que esta possa ser forma de inclusão social, explica Ana Isa Coelho.

Por um lado, foi feito um mapeamento dos espaços onde se pode desenvolver programação em pequena escala, “espaços onde se pode promover a socialização”, explica, como coretos, lavadouros, largos, etc. Por outro, foram identificadas as populações com problemas sociais a quem se quer chegar. A saber: os velhos, que sofrem de isolamento demográfico e social; os jovens, cujo abandono escolar e da região é uma preocupação para os municípios; e os migrantes e minorias étnicas.

Assim, ao longo destes anos, o programa atacou em várias frentes. Junto dos mais novos, por exemplo, a educação para a inclusão foi feita com quatro agrupamentos de escolas de Évora, em que artistas locais desenvolveram residências artísticas, trabalhando com professores e alunos. Foi ainda feita formação quer a funcionários das autarquias, quer a agentes culturais.

Também foram promovidas acções que envolveram pessoas em situação de vulnerabilidade e que incluíram cerca de 1800 pessoas, de jovens institucionalizados a pessoas com deficiência e idosos em lares, enumera Ana Isa Coelho. “Desafiámos os agentes culturais para desenvolver acções com estas pessoas — dança, teatro, marionetas, criação literária, música, pintura, fotografia, etc. Foram 12 a 18 meses de trabalho intensivo, mobilizando outras entidades da região”, conclui.


Notícia actualizada dia 26/06/2023, às 15h08, foi acrescentado que os doentes não vão deixar de ser medicados, mas que a prescrição cultural é uma alternativa.

Sugerir correcção
Comentar