De que nos serve lembrar o Holocausto?

Lembrar o Holocausto não pode ser justificar a perseguição de outro povo. Nem pode ser uma frase vazia, uma promessa do Ocidente para conviver melhor com o seu passado e dormirmos melhor à noite.

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No dia 30 de outubro de 2023, representantes israelitas no Conselho de Segurança das Nações Unidas usaram nas suas lapelas a distintiva estrela amarela de David – símbolo paradigmático da violência nazi contra os judeus da Europa – onde se liam as palavras never again. Ao longo do último mês têm-se intensificado as comparações e analogias com a Shoah como justificação absoluta da ação das IDF, arma retórica recorrentemente utilizada pela propaganda israelita. Assistindo a hospitais e campos de refugiados bombardeados, a civis e crianças assassinadas todos os dias e ao desumanizar em direto do povo palestiniano, resta-nos perguntar: de que nos serve, afinal, relembrar o Holocausto?

Entre 1933, com a ascensão do nacional-cocialismo na Alemanha, e 1945, a derrota do fascismo no final da Segunda Guerra Mundial, estimam-se que mais de seis milhões de judeus tenham sido assassinados. Desde o início do regime do NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) que pessoas judias, roma e sinti, homossexuais, com deficiência e opositores políticos foram sistematicamente perseguidos, segregados, presos arbitrariamente e enviados para campos de concentração e, mais tarde, de extermínio. Em 1942, na Conferência de Wannsee, as altas patentes das SS e do Estado reúnem-se nos subúrbios de Berlim para decretar a “solução final” para a questão judaica, condenando um povo inteiro à aniquilação. Os Einsatzgruppen espalharam o terror pelo leste da Europa, eliminando em massacres brutais, por vezes, vários milhares de homens, mulheres e crianças judeus por dia. Auschwitz, Belzec, Treblinka, Majdanek, Sobibor e Chelmo tornaram-se, na nossa memória coletiva, sinónimos do terror absoluto que se abateu sobre a Europa.

Depois de um período de silenciamento, a memória do Holocausto teve o seu momento de anamnese, como lhe chama o historiador Enzo Traverso, e passou a ocupar o espaço público de grande parte das cidades do centro e leste da Europa, a motivar pedidos de desculpa e indemnizações de vários Estados e a marcar um dos capítulos mais trágicos da história do nosso continente. Dissemos “nunca mais” e, no entanto, deixámos que se repetisse. Despolitizámos a Shoah, patologizámos os seus responsáveis, apagámos a resistência antifascista e dissemos que tinha sido um episódio que contrastava com o resto da nossa História.

Poucos anos depois, França aplicava métodos repressivos assassinos contra os argelinos que se quiseram libertar do seu jugo colonial, Portugal cometeu terríveis massacres contra as populações que lutavam pela sua libertação, Inglaterra esmagou a revolta dos Mau Mau levando à morte de milhares de pessoas. Não é preciso ir tão longe. Já nos anos 1970, o Ocidente apoiou brutais ditaduras na América Latina que levaram ao desaparecimento forçado de dezenas de milhares de pessoas. Durante décadas, fecharam os olhos ao apartheid na África do Sul. Nos anos 1990, assistimos à violência genocida abater-se sobre o Ruanda – em muito ligada à forma como a administração colonial procurou governar os povos do país – e sobre a antiga Jugoslávia. Agora, com todo o mundo a olhar, deixamos que aconteça ao povo palestiniano. Perseguido, segregado, brutalizado há décadas e, hoje, em todas as nossas televisões e nas redes sociais, a ser aniquilado pelo Estado que se diz guardião desse “nunca mais”.

Lembrar o Holocausto não pode ser justificar a perseguição de outro povo. Ao mesmo tempo, não pode ser uma frase vazia, uma promessa do Ocidente para que conviva melhor com o seu passado, para dormirmos melhor à noite. O sionismo não é dono da memória da luta contra o Terceiro Reich e das suas vítimas. Não deixemos que a memória daqueles que foram segregados, perseguidos e assassinados se torne numa carta branca para o Estado que se arroga a memória de um povo inteiro.

Pelo contrário, essa memória pertence ao legado antifascista, antirracista e de todos aqueles que acreditam que “nunca mais” é sobre antissemitismo mas igualmente sobre todas as formas de genocídio, racismo, xenofobia, discriminação, homofobia e capacitismo. Como se lia num cartaz do grupo Jewish Voice for Peace numa manifestação há algumas semanas: não deve ser “never again to our people”, mas “never again to any people”.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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