Indivíduo e sociedade, um binómio em desequilíbrio?

São necessárias melhores políticas de saúde, de educação, económicas, de condições de vida e de justiça, que permitam dotar o indivíduo de verdadeiras oportunidades.

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Bella Huang/Unsplash

É já um debate clássico na Psicologia a discussão entre nature versus nurture, ou seja, a eterna questão de se determinadas características comportamentais são inatas ou adquiridas através da interação do indivíduo com o ambiente.

Ora, e de que forma se pode relacionar este debate com a saúde mental, e com uma visão compreensiva sobre os comportamentos ditados pela sua interinfluência na atualidade? Se, por um lado, se fala tanto sobre a importância dos indivíduos serem resilientes, persistentes, pró-ativos, empreendedores e mais “robustos”, psicologicamente falando; por outro, talvez seja pertinente perguntar qual o peso da sociedade e do meio envolvente para a promoção e construção dessas mesmas características? Será que estamos em equilíbrio neste binómio?

Caros leitores, o que se pretende de seguida são apenas “reflexões perguntadas”, numa espécie de brevíssimo exercício de filosofar.

… Até que ponto o peso da responsabilidade para se ter mais saúde mental não está a ser colocado de forma talvez um pouco excessiva e maioritariamente unilateral sobre o indivíduo, mais do que na sociedade em si?

… Como é possível a ênfase de tais demandas recaírem frequentemente sobre o indivíduo, quando praticamente tudo na sociedade e no seu meio envolvente caminha em sentido contrário?

… Pretende-se que as crianças sejam autónomas, independentes e estejam preparadas para o futuro e para o mundo. Na fase adulta, que sejam estudantes autónomos, cidadãos responsáveis e inseridos no mundo do trabalho e da sociedade em geral, e que reajam adequadamente aos desafios (de ganhos e de perdas) que encontram. Igualmente é desejável que sejam empáticos, que se coloquem no lugar do outro, que defendam a igualdade e a justiça. Mas, paralelamente, assistimos a uma cultura (pelo menos a ocidental) onde a criança cresce frequentemente em ambientes com poucos limites, onde dita as “leis” da família numa quase total inversão entre o papel de pais e filhos, praticamente num mundo “assético de realidade”, onde são comuns as dificuldades em lidar com a frustração e com os “nãos”.

… É desejável que os hábitos e estilos de vida das populações passem por escolhas saudáveis, com base em informações fidedignas e credíveis, mas assiste-se a um frenesim de ofertas tentadoras em todas as áreas (sobretudo na alimentação), que estão ao alcance dos nossos olhos e com uma enorme facilidade de acesso não só no mundo real, como no mundo virtual?

… Os ambientes de trabalho protetores de que tanto se fala serão compatíveis com jornadas prolongadas de trabalho, onde se repetem as histórias de segundos e terceiros empregos para que o rendimento económico seja suficiente para suprir as principais despesas (olhando mais especificamente para a situação do nosso país)?

… E os cuidados a acessos de saúde fundamentais para garantir uma melhor saúde mental estarão de facto ao acesso de todos, e com a rapidez necessária? E os acessos à educação, a condições de vida dignas, à justiça e à igualdade de direitos?

… Se há muitos séculos, o meio/sociedade imperava de forma muito mais dramática sobre o indivíduo, não seria expectável que na actualidade, com o conhecimento e avanços em variadíssimas áreas científicas, a situação estivesse mais equilibrada? E que o Homem tivesse aprendido com os seus erros na história e conseguisse ajudar-se mais a si próprio com esse conhecimento, traduzindo-se, por sua vez, numa melhor saúde mental?

… Até onde vão os limites da responsabilização da sociedade na promoção da saúde mental? E onde fica a linha separadora com os limites da responsabilização do próprio indivíduo?

… Não vos parece que, por vezes, estamos perante paradoxos existenciais? Como se estivéssemos a viver em mundos disruptivos, em que se ligam botões on, de repente, quando toda uma realidade à volta se encontra num modo contrário, e a alta velocidade a exigir tudo “para ontem”?

Com estas questões, não estou a dizer que a sociedade nada tem feito. Contudo, talvez seja preciso fazer mais para equilibrar este binómio, porque as experiências do meio formam e moldam comportamentos desde idade precoce, que se desenrolam como uma espécie de “bola de neve” de probabilidades, tanto de aumento de comportamentos saudáveis e promotores da saúde como também, infelizmente, o seu inverso.

São necessárias melhores políticas de saúde, de educação, económicas, de condições de vida e de justiça, que permitam dotar o indivíduo de verdadeiras oportunidades, para que possa florescer e desenvolver todo o seu potencial.

Para uma melhor saúde mental é frequentemente sugerido ao indivíduo que seja pró-ativo, autónomo, resiliente, independente; que tenha autoestima e competências sociais/emocionais; que mantenha equilíbrio entre a vida profissional, pessoal/familiar e actividades de lazer; que adopte hábitos e rotinas comportamentais saudáveis; que tenha comportamentos de autocuidado e fique atento à saúde física e psicológica (e procure ajuda profissional, se necessário); que seja gentil consigo mesmo… e mais, e mais…

Quando, convenhamos, numa sociedade que se movimenta quase que com a rapidez desenfreada e galopante em direção ao abismo como se de uma Cavalgada das Valquírias, de Wagner, se tratasse, é bastante difícil ser-se capaz de todas estas proezas, e quase que diria que não há nature que resista…

A saúde mental é um todo, é um jogo que se joga com vários parceiros e onde o indivíduo e a sociedade têm inevitavelmente de cumprir os seus papéis, para que a mão do jogo possa estar repleta de trunfos. Nunca é de mais relembrar o provérbio já sobejamente conhecido, mas sempre actual e muito verdadeiro: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.”


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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