Os filhos, os seus caprichos e o nosso permanente sentimento de culpa
Podemos não lhes ceder aos caprichos, sem pestanejar duas vezes, mas fica sempre qualquer coisa a remoer cá dentro.
Querida Mãe,
Venho confessar-me! Sempre me ensinou que é importante reflectirmos sobre onde falhámos e pedirmos desculpa, e é por isso que aqui estou para, com coragem e bravura, admitir os erros graves de que os seus netos me acusam.
Quero pedir perdão: Pela vez em que não larguei tudo o que estava a fazer para ir buscar uns óculos para lhes proteger os olhos do sumo de laranja que lhes espirrou para a cara, com os previsíveis protestos de que a culpa era minha. Pela vez em que pus o Nesquik, antes – note bem, mãe — antes do leite! Pela vez que cortei uma torrada ao meio, quando era óbvio que a queria inteira. Pela vez que cantei a letra do Balão do João, e me enganei em duas estrofes. Por me ter ousado esquecer que odeia cogumelos. Por não conseguir tirar as costuras das meias! Por ter cortado a maçã aos barcos, quando era para ser só em duas metades.
Enfim, já percebeu a seriedade destas ofensas. Por favor não me sinalize à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens...
Querida Filha,
Vou já tratar da denúncia porque, de facto, não sei como é que os meus adorados netinhos ainda não pegaram no telefone para ligar para uma qualquer linha de apoio a crianças maltratadas.
Por estranha coincidência, também tu e os teus irmãos me acusaram de coisas muito parecidas, será que existe aqui algum padrão inscrito no nosso ADN?
Tu, por exemplo, enfurecias-te também com as meias, sobretudo de manhã, e mal eu tinha acabado de te calçar a segunda, já a primeira voava pelo ar; já a tua irmã tinha a especialidade de me acordar aos sábados de madrugada para exigir que lhe fizesse um esparguete que tinha umas quaisquer qualidades necessárias para a pôr em forma para uma prova de natação (como sabes, retenho pouco das qualidades nutritivas dos alimentos); e o Francisco ficava furioso quando as “camisolas de ganhar”, umas T-shirts com números ou coisa assim, iam todas para lavar ao mesmo tempo.
E isto é só o que me vem à cabeça no primeiro instante, porque podia ficar aqui indefinidamente a listar todos os outros crimes contra a humanidade que pesavam no texto final da Acusação.
Ai, espera, a que me marcou mais foi aquela vez em que te queixaste à minha mãe, que já tinha fraca opinião sobre as minhas qualidades maternas, de que eu te mandava sempre para a escola com uma colher que não cabia no gargalo do frasco do iogurte, condenando-te assim a morreres à fome, pior ainda, à vista do alimento que te poderia salvar.
A sério, que paciência.
Mas, pensando bem, o problema não está nas exigências absurdas e omnipotentes, a questão está no impacto que têm sobre nós. Podemos não lhes ceder aos caprichos, sem pestanejar duas vezes, mas fica sempre qualquer coisa a remoer cá dentro. Como se algures existisse uma mãe melhor do que aquela que nós somos, capaz de responder magicamente a todos os desejos e, mais importante ainda, de forma instantânea. Essa mãe, saída de um daqueles livros do Estado Novo que ainda apanhei na escola, e que além de uma fada do lar e de uma esposa diligente, era a mãe ideal, a Mãe com maiúscula, a quem os filhinhos recitavam poemas de gratidão — “Com três letrinhas apenas se escreve a palavra Mãe. É das palavras pequenas, a maior que o mundo tem.”
Ingratos. Os nossos, claro. Os daquele tempo comiam os cogumelos sem uma queixa, mesmo que fossem alérgicos.
Ana, a sério, já que vão todos acabar no divã do psicanalista, ao menos que tenham umas queixas dignas do preço que vão pagar pela consulta. A propósito, tenho de te cobrar algumas, até porque a minha mãe já cá não está para pagar as dela.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.