“Não é um hotel, é uma adega onde se pode dormir”. Afinal, estamos no Pico

Na ilha açoriana ninguém convida o outro para sua casa, os picoenses convidam as pessoas para as suas adegas. Adega e enoturismo da Azores Wine Company, abertos desde 2021, inspiram-se nessa tradição.

Foto
A adega e enoturismo da Azores Wine Company fica na freguesia das Bandeiras, Madalena do Pico Francisco Nogueira / Direitos Reservados
Ouça este artigo
--:--
--:--

"Ninguém no Pico convida as pessoas para sua casa, convidam-nas para as suas adegas. As pessoas juntam-se nas adegas." Foi esse o pressuposto entregue aos quatro arquitectos — duplas dos ateliês SAMI-arquitectos e drdh architects — que desenharam a espectacular e despojada adega da Azores Wine Company (AWC), inaugurada em 2021, nas Bandeiras, na Madalena do Pico, Açores.

O edifício quadrado tem uma espécie de claustro moderno, onde um jardim simples contrasta com a magnitude da paisagem vinícola da ilha 'lá fora' e um tanque (não, não é uma piscina) recebe as águas da chuva que a inclinação da cobertura permite aproveitar. Esse espaço interior dá acesso aos diferentes cantos de um corpo único e coerente, que combina usos diversos: a produção e o estágio de vinhos; os apartamentos turísticos — nas adegas picoenses "há sempre uma cama ou um quarto pequeno onde se pode dormir" —; e áreas de lazer, comuns a hóspedes e a visitantes que, sem pernoitar, podem ir ali fazer uma prova — os vinhos têm a assinatura de António Maçanita, um dos sócios —, almoçar na sala de barricas ou jantar no restaurante.

"Não é um hotel, é uma adega onde se pode dormir", enuncia Filipe Rocha, o outro sócio da AWC, antes de partirmos à descoberta de um projecto que só nasceu por ser "considerado excepcional" (e que teve importante financiamento comunitário), uma vez que, com a classificação da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico como Património Mundial pela UNESCO em 2004, passaram a existir vários constrangimentos à construção na ilha. Há zonas onde não é possível construir sequer, outras onde há regras apertadas para o que é possível edificar. Também não se pode mexer nos icónicos e belos muros de rocha basáltica que são já um postal do Pico. E ainda bem.

A adega da Azores Wine Company é quadrado, com um claustro interior onde um jardim simples faz a ligação entre os diferentes usos do edifício Francisco Nogueira / Direitos Reservados
A Azores Wine Company inaugurou adega e enoturimos nas Bandeiras em 2021, apesar de a obra ter ficado pronta no início de 2020 Francisco Nogueira / Direitos Reservados
O projeto da adega da Azores Wine Company, no Pico, é de quatro arquitectos, dos ateliês SAMI-arquitectos e drdh architects Francisco Nogueira / Direitos Reservados
No restaurante da adega e enoturismo da Azores Wine Company, é possível comer ao balcão ou na Mesa Pico, uma peça única e muito especial Francisco Nogueira / Direitos Reservados
No restaurante da Azores Wine Company, quem come ao Balcão tem vista privilegiada para a dança coreografada que é o serviço de cozinha e sala Francisco Nogueira / Direitos Reservados
A manteiga Rainha do Pico está presente em vários menus Francisco Nogueira / Direitos Reservados
Os quartos dos T0 da Azores Wine Company, no Pico, são voltados para o Atlântico,Os quartos dos T0 da Azores Wine Company, no Pico, são voltados para o Atlântico Francisco Nogueira / Direitos Reservados,Francisco Nogueira / Direitos Reservados
Os quartos dos T0 da Azores Wine Company, no Pico, são voltados para o Atlântico Francisco Nogueira / Direitos Reservados
A decoração de interiores na adega e enoturismo da Azores Wine Company é da designer Ana Trancoso Francisco Nogueira / Direitos Reservados
Pormenor da decoração do apartamento T2 do enoturismo da Azores Wine Company, no Pico Francisco Nogueira / Direitos Reservados
Fotogaleria
A adega da Azores Wine Company é quadrado, com um claustro interior onde um jardim simples faz a ligação entre os diferentes usos do edifício Francisco Nogueira / Direitos Reservados

"Aos arquitectos passámos a nossa interpretação do que é uma adega no Pico. E no Pico uma adega é muito mais do que uma adega." Se é. As duplas Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira (que "viveram na ilha no início de carreira" e assinam ali outros projectos, entre eles a Casa dos Vulcões, explica Filipe) e David Howarth e Daniel Rosbottom (baseados em Londres e amigos dos primeiros) souberam transpor essa tradição para um projecto de vinhos e enoturismo exemplar.

São seis os apartamentos, cinco T0 com vista para o mar batido do Atlântico e para os currais (os talhões delimitados pelos tais muros construídos pedra a pedra) e um T2 com uma sala-cozinha mais generosa, voltado para a floresta ainda por desbravar — a ilha já chegou a ter 15 mil hectares de vinha, hoje tem pouco mais de 1000, e onde outrora havia videiras há hoje muitas faias-da-terra, incensos e outras espécies botânicas.

Durante a noite, ouve-se um vento que, apesar de metediço, embala. E ao acordar despertamos sem pressas ao som dos pombos-torcazes e dos melros-negros que chilreiam entre a zona de floresta, logo ali ao lado, e as vinhas mesmo à nossa frente. O banho é perfumado com aromas vínicos, amadeirados e com notas doces de citrinos, da linha Vinoteca by Oliófora. Da janela de vão gigante vemos o mar e lá fora um dos currais foi transformado em varanda privativa.

Nos 50 hectares de vinha que a AWC tem à volta da adega (num total de 120 hectares, com vinhas também no Lajido da Criação Velha, em São Mateus — aquela onde tudo começou, "a vinha dos malucos": foram precisos "três anos e 30 pessoas para recuperar, plantar e refazer os muros", conta Filipe — e, já na costa norte, na Baía de Canas), também era tudo mato, até ali chegarem os dois empresários de sangue açoriano. Há oito anos, compraram 43 parcelas aos filhos de um madeirense que "levou 18 anos a comprar vários terrenos". "Não sabemos qual era a sua ideia nem a família sabia onde estavam as parcelas, mas depois descobrimos que estavam quase todas ligadas", conta Filipe Rocha.

Filipe é de São Miguel e em 2007 conheceu António, que tem família da parte do pai naquela ilha, quando dirigia a Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada e convidou o enólogo a dar ali umas aulas. Em 2014, iniciaram juntos a aventura de fazer vinhos no Pico. Essas referências são hoje mais de 15, com vinhos brancos frescos e salinos em que brilham as castas autóctones Arinto dos Açores e Terrantez do Pico e o Verdelho (que Maçanita acredita ser também originária do arquipélago; em 2018 colocou mesmo essa hipótese no artigo científico Unravelling the origin of Vitis vinifera L. Verdelho, publicado no Australian Journal of Grape and Wine Research), nomeadamente vinhos de parcelas específicas, como são as dos Utras e dos Aards (nomes de família flamengas, que chegaram ao Pico no início do povoamento, no século XV).

Foto
António Maçanita e Filipe Rocha são sócios na Azores Wine Company, conheceram-se em 2007 e em 2014 começaram a desbravar o Pico Fabrice Demoulin / Direitos Reservados
Foto
Judith Martin, natural das Canárias, em Espanha, é a alma do enoturismo da Azores Wine Company no Pico Fabrice Demoulin / Direitos Reservados

Mas também com vinhos de castas minoritárias, como é o caso do Boal que a AWC vai lançar este ano (apenas 300 garrafas). Com vinhos tintos também: já têm um Saborinho (Tinta Negra na Madeira e Molar em Colares) e as referências Tinto Vulcânico e a Proibida e, entretanto, plantaram Bastardo, Rufete e Castelão. Espumantes. E um Verdelho fortificado, um 10 anos que será uma das grandes novidades de 2023.

Mergulho na mesa e na cultura das ilhas

No enoturismo da AWC, nada parece ser obra do acaso. Numa fase de transição, conhecemos ao Balcão (literalmente um balcão no restaurante, onde é possível comer enquanto apreciamos a dança coordenada do staff) Joshua e Daniela a "segurar as pontas", mas a partir do final do mês de Abril ficará aos comandos da cozinha o chef João Fevereiro. O essencial, o tipo de experiência que a AWC pretende proporcionar, diz Filipe Rocha, não mudará.

Dos pães de água e de alfarroba da casa (uma paixão de Daniela) aos produtos da terra — a manteiga Rainha do Pico, o local queijo do Morro e o queijo da ilha vizinha de São Jorge, "as favas da festa", veja, atum e outros peixes do mar dos Açores, vazia do Pico, legumes biológicos (Myrica Faial Permaculture Farm) e algas comestíveis (seaExpert) que chegam de barco do Faial —, a proposta é de imersão na gastronomia das ilhas. Até a experiência de cafés, disponível nos quartos, nos leva até São Miguel, onde um parceiro argentino importa e torra café (Intz48) para fazer os seus próprios blends.

E também na cultura, que está presente nos mais pequenos detalhes — no saco do pão feito em tear manual de São Jorge — e na decoração sóbria que dá vida ao betão e ao microcimento escolhido para tectos, paredes e chão. Nada é deixado ao acaso. Judith Martin, a alma do enoturismo, explica que o projecto de interiores ficou a cargo da designer Ana Trancoso e combina mobília feita de propósito e à medida por artesãos locais, como o senhor Adriano, 80 primaveras, peças de autor, como a famosa Lua Davide Groppi, que ilumina o restaurante, e até peças em segunda mão, como os cadeirões nórdicos em pele ou um candeeiro dos anos 1970.

"Para nós, é importante pôr, dentro do possível, o foco nas ilhas", conta Judith, que há sete anos trocou as Canárias, e uma vida e trabalho mais fáceis, para seguir Filipe nesta aventura do vinho e do turismo nos Açores. Não é só o sotaque que a denuncia, também percebemos a ligação pelos vinhos vulcânicos daquelas paragens cuja prova o casal proporciona na adega (os vinhos que António Maçanita faz noutras paragens também ali estão disponíveis) e por detalhes inestimáveis como a faca de trabalho andaluza que a espanhola trouxe para a mesa, "uma peça única, feita à mão, em que o cabo, com corno de ovelha, cabra e vaca é incrustado no metal".

Do seu engenho, nascerá em breve um programa de massagem no meio das vinhas, que estão em transição para modo de produção biológico. A relaxar na vinha dos Aards, a provar os Açores, dentro e fora da adega, a mergulhar nas piscinas da Criação Velha, de Santo António ou das Lajes ou a subir a montanha, a palavra de ordem é mergulhar no Pico.

O Terroir viajou para o Pico a convite da Azores Wine Company.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários