A lava "correu para a banda do norte por espaço de uma légua e meia até cair da rocha abaixo e fazer um grande cais abaixo da rocha onde se espraiou aquele polme e se tornou pedra viva, em que não se pode pôr pé descalço nem se cria nenhum género de erva, nem mato". A descrição é do historiador Gaspar Frutuoso (em Saudades da Terra, do século XVI), a primeira pessoa a escrever sobre a vida nas ilhas.
Não só hoje é possível crescer ali mato — era o que lá estava antes de a Azores Wine Company (AWC) arrendar e recuperar 40 hectares na Baía de Canas/Ponta do Mistério, na zona Norte da ilha do Pico, nos Açores —, como é possível plantar videiras. De quê? Essencialmente, castas tintas, embora também lá haja variedades brancas. Em 2019 e 2020, a empresa (que inaugurou em 2021 adega e apartamentos turísticos nas Bandeiras) plantou numa fajã lávica, entre S. Roque e a Prainha, em plena Reserva Florestal de Recreio da Prainha, mais Arinto dos Açores e Verdelho, um pouco mais da tinta Saborinho (a Tinta Negra da Madeira e o Molar de Colares), um bocadinho de Castelão e uma área considerável de Bastardo e Rufete.
As quatro castas tintas representam 60% dos 40 hectares de vinha (a AWC tem no Pico já 120 hectares de vinha, 50 de vinha própria, o resto arrendada), que em 2022 já teriam produzido, não fosse a sede e a inteligência do pombo-torcaz e do melro-negro, explicou ao Terroir o produtor e enólogo António Maçanita. "Colocámos redes em todas as plantas que entendemos que tinham boas varas à produção, protegemos planta a planta, o que é um bocadinho de doidos, mas o pombo-torcaz e o melro-negro são muito, muito, espertos. Levantam a rede e entram por baixo. Foi uma grande sova."
Como o é aquele terreno. Se os icónicos currais de pedra basáltica, que compõem a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, classificada com Património da Humanidade pela UNESCO desde 2004, protegem vinhas plantadas sobre rocha lávica e quase nenhuma matéria orgânica, obrigando a uma viticultura muito exigente, Baía de Canas é "next level". É o maior desafio, explicou-nos no local o sócio de Maçanita na AWC, Filipe Rocha. Do Miradouro da Ponta do Mistério da Prainha (os picoenses chamavam Mistérios às zonas lávicas onde não crescia nada, era um mistério) vê-se bem a diferença entre os 40 hectares e a área contígua tomada pela floresta. Perto, há ainda muitas parcelas de vinho, mas "vinho de cheiro", onde está plantado o híbrido americano Isabella.
Porquê? À primeira vista, é tudo rocha. E, à segunda, quase tudo rocha. Quase não vemos as videiras no meio de um cenário que tem tanto de belo como de lunar. Andar ali também é como fazer trekking numa montanha e sair do trilho. Os muros (uma trabalheira imensa reconstrui-los) até são mais baixos e espaçados ("havia menos pedra disponível", explica Filipe), mas dentro destes currais o solo é duríssimo e muito irregular.
António Maçanita tem "fé" que 2023 trará os primeiros tintos das castas que resolveu ali colocar. Consiga a AWC controlar a passarada (os antigos não terão tido este problema, pois os pássaros tinham mais uvas para bicar; o Pico chegou a ter "12 a 16 mil hectares" de vinha, hoje tem pouco mais de 1000) e as condições edafoclimáticas sejam de feição (no Pico, nunca se sabe; e a vindima de 2022 foi desastrosa).
Vamos por uvas. Porquê o Bastardo (lá fora Trousseau e o mesmo Bastardo que existe na Madeira e em Portugal continental)? "Pela conexão genética" às castas açorianas. "É um dos progenitores do Terrantez do Pico" e "meio-irmão do Saborinho", pelo que "tem de ter existido" ali, explica o enólogo que gosta de ir à origem das coisas e que em 2018 colocava a hipótese de também o Verdelho ser uma casta dos Açores (tal e qual os seus "filhos" Terrantez do Pico e Arinto dos Açores) no artigo científico Unravelling the origin of Vitis vinifera L. Verdelho, publicado no Australian Journal of Grape and Wine Research e em que são co-autoras duas investigadoras da Biocant.
O Rufete? "Um, já faz parte do encepamento autorizado [para a Indicação Geográfica Açores], foi encontrado nas vinhas velhas; dois, havia alguma disponibilidade no viveiro." E o Castelão? É mais fácil de propagar, é mais produtiva e é tardia. E, sim, Maçanita encontrou ligação aos Açores: "O Castelão é progenitor da casta [tinta] Agronómica, que ainda há nos Açores". "É muito capaz que o Castelão esteja [ali] no limite, mas [num sítio mais quente, para o Pico, entenda-se] a expectativa é conseguir menos produção do que é normal, e que ela consiga atingir as maturações."
De uma só planta, fizeram-se 8 mil
Caso radicalmente oposto é o do Malvarisco, casta tinta a que os antigos do Pico chamavam Bastardo (mas que não é o Bastardo de que falámos neste texto), de que a AWC só encontrou na ilha "uma planta", uma só. Em vinhas velhas de um viticultor a quem a empresa compra uva, no Lajido da Criação Velha. Dessa videira, com "80 a 90 anos", nasceu uma "área de quase 4 hectares, dá mais ou menos 8 mil plantas", a maioria em S. Mateus (a vinha onde tudo começou para a AWC, e que os locais conheciam como "a vinha dos malucos") e algumas na tal Baía de Canas. "Mas o que é que nós aprendemos? As uvas tintas são ainda mais fustigadas pelos pássaros do que as brancas. Por isso, hoje estamos a plantar tintas nos arruamentos das brancas, nas zonas onde há mais controlo. Vamos reproduzindo e plantando."
É impossível adivinhar o interesse enológico desta Malvarisco e esta variedade, como outras, terá "desaparecido por uma razão" (já com o Terrantez do Pico, o Governo Regional, num esforço a que António Maçanita se juntou, identificou 89 plantas, que hoje, só na AWC são "70 mil"), mas o enólogo confia que essa razão tem de ser vista no contexto do passado. "O meu papel é resgatar, experimentar e depois logo vemos. É uma intuição: as castas que desapareceram eram as que não tinham interesse para o mercado; nos brancos desapareceram as que tinham mais acidez; nos tintos as que eram mais frescas."
Maçanita, que também faz vinhos no Douro, no Alentejo e no Porto Santo, não acredita em regiões vinícolas dentro de uma caixa (leia-se estilo) estanque, nem em "seguir ondas". E depois de fazer o primeiro Saborinho, em 2014 — a referência chama-se Sabor(z)inho — estava lançada a semente. "É um vinho sublime e foi o vinho que nos deu confiança: queres ver que nos Açores não é só brancos?"
Entre brancos e (agora) tintos, e ainda um Verdelho fortificado quase no final da fermentação, a lançar em breve (na adega das Bandeiras, a AWC já tem 4000 litros de fortificados e passitos, pacientemente a envelhecer), a produção anual da empresa que chegou ao Pico em 2014 é de cerca de 80 mil garrafas, em vinhas que produzem 10% a 15% do que produz uma vinha em Portugal continental.
O Terroir viajou para o Pico a convite da Azores Wine Company.