María Ulecia imortaliza em azulejos as ervas selvagens e livres

Uma Aster squamatus na Rua da Alegria, uma Poa pratensis na Gonçalo Cristóvão e uma Zoysia matrella na Fernandes Tomás. No Porto, está a crescer um herbário cerâmico que dá vontade de comer.

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María Ulecia: "Tudo está na natureza" Nelson Garrido

No espaço luminoso há colheres e facas agrupadas em frascos de vidro, um ralador a escorrer e muitos moldes e formas de cozinha. Ali, uma máquina para esticar pasta fresca, um ou outro salazar e um forno. "Toda a gente quer fazer pizzas neste forno", sorri María Ulecia, ceramista "muito pouco ortodoxa" que gosta "muito" de comer e de cozinhar — tudo: argila, folhas apanhadas no chão, ervas ditas daninhas que encontra no Porto e que desenha, pinta em azulejos e fotografa para imortalizar. "No fundo, a cerâmica, com processos muito gastronómicos, é culinária."

Quando foi para Madrid, onde estudou Belas Artes, a espanhola foi viver com a avó, "que era uma grande cozinheira". "Como já estava muito velhota, os meus tios, para ela estar entretida e para ter mais um sentido de vida, resolveram que todos os dias iria jantar com ela um dos filhos ou netos. Ela acordava de manhã, ia ao mercado e cozinhava todos os dias o prato favorito do filho ou do neto que lá ia jantar. Engordei e aprendi muito com ela." Ainda falta dizer que a artista plástica está intrinsecamente ligada à botânica e à natureza desde sempre, desde a Espanha franquista e o desenvolvimento agrário que levava o pai, pessoa de "uma certa sensibilidade", a visitar quintas de onde regressava com legumes, fruta e flores frescas e outros produtos da terra que hoje são a base da sua matéria-prima e da matriz do seu trabalho, que é todo um prazer, geometrias, texturas, composição e decomposição.

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A capa da Fugas com um dos seus painéis Nelson Garrido

"Tudo está na natureza", diz María Ulecia, que começou a fazer cerâmica "por prazer", em "várias fases da vida" e "mais a sério em Lisboa", onde viveu de 2006 a 2019 antes de se mudar para o Porto, "um bocadinho mais recolhido, mais humano" ("vivo num bairro que ainda é bairro e onde as pessoas se conhecem pelo nome"), como convém à sua arte, ao seu calcorrear da cidade, ao seu bordar pausado das plantas silvestres que "inesperadamente" vai encontrando a despontar nas nesgas do betão.

Começou aí um herbário cerâmico — quando descobriu que no Porto não se matavam essas plantas, "só se cortavam", menos mal —, um "tributo à natureza espontânea e à sua força e resiliência", uma colecção científica de ervas que vai identificando e desenhando pelo caminho para depois tranquilamente as pintar no seu atelier em painéis de azulejos, que mais tarde colará junto à planta respectiva. "A planta é cortada e o azulejo, se não for vandalizado, permanece", explica a artista de rua, que intervém nos seus muros urbanos a qualquer hora do dia, tendo o cuidado de não escolher paredes muito velhas "porque muito provavelmente essas serão reabilitadas".

O seu primeiro ponto no mapa, uma Aster squamatus a trepar por um painel vertical de 14 azulejos 10x10, ainda lá está intacta no número 334 da Rua da Alegria. "É uma peça alta que colámos no final de Julho depois de um jantar em casa com uns amigos. Foi um momento tão bonito, tão feliz, que decidi continuar." Há outros momentos e outras plantas que vai revisitando com a frequência do seu quotidiano — quase sempre na companhia da fiel amiga Oliva. Vá pelos seus dedos: Erigeron canadensis na Rua da Escola Normal, Artemisa dracunculus na Rua do Dr. Alves da Veiga, Poa pratensis na Rua de Gonçalo Cristóvão, Parietaria judaica no Largo José Moreira da Silva, Zoysia matrella na Rua de Fernandes Tomás... "Estou a deixar uma memória. Estou a oferecer algo a uma cidade que me deu muito."

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Nelson Garrido
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Nelson Garrido
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María Ulecia

No seu atelier luminoso e na cidade que a acolheu, o herbário vai crescendo em várias direcções, nos cadernos e nos azulejos (que agora molda e coze em fornadas), junto às fendas no cimento onde há vida, em colaborações (como o desafio do calígrafo Luis de Bourbon, do qual resultou o painel All good things are wild and free [Todas as coisas boas são selvagens e livres], dos diários de Henry David Thoureau e do qual só restam três peças das que foram coladas na Travessa de Santo Isidro), em projectos como a candidatura ao Criatório (definir áreas do Porto; identificar ervas; organizar um passeio por mês durante meio ano) e na sua própria cozinha, que, utensílios à parte, facilmente se mistura com o trabalho no atelier, "tão relaxante quanto cozinhar", diz María, consumidora compulsiva da Feira da Vandoma (e de agulhas de tricot de madeira) e "muito admiradora e muito curiosa daquilo que se faz de novo" também na gastronomia silvestre.

Sempre que sai da cidade, colhe funcho e corta alho selvagem e apanha "todas as plantas salgadinhas" na praia. Faz um sumo de urtigas para aproveitar o "verde forte" e o colocar "dentro do barro". E deixa secar todas as plantas que não usa durante o ano. "Quando tenho um saco bem cheio, queimo-as e junto as cinzas na argila. É quase imperceptível, mas é uma lembrança bonita."

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María estudou Belas Artes em Madrid Nelson Garrido
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