A subjetividade da felicidade

Estar consciente é diferente de estar consciente de algo. Consciência não é sinónimo de atenção.

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"Acordo e procuro sintonizar-me no canal da felicidade" Aaron Burden/Unsplash

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Há dias, enunciei, perante um grupo de cinco dezenas de pessoas ligadas ao ramo imobiliário, alguns momentos em que desfruto de satisfação plena, ou seja, circunstâncias em que, numa escala de felicidade entre 0 e 10, me posiciono no cume.

O primeiro momento que expus, e que descrevi com pormenor, alertando para a subjetividade da questão da felicidade, é uma rotina que cultivo todos os dias na primeira hora após a longa inconsciência noturna que me permite viver instantes de satisfação plena. Abro aqui um parêntese para uma ressalva sobre a inconsciência noturna, explicada por António Damásio em Sentir e Saber: A Caminho da Consciência: “Quando estamos profundamente adormecidos, a consciência retorna durante os sonhos e cria uma situação bem esquisita. Estamos adormecidos e estamos conscientes.”

Simplificando: acordo e procuro sintonizar-me no canal da felicidade. Passo descrever a rotina: após cumprir funções básicas de higiene, alimento e acaricio os dois gatos que connosco habitam, repito para mim próprio que estou vivo e que isso é bom, inspiro e expiro profundamente algumas vezes com a consciência — estar consciente é diferente de estar consciente de algo —, de que o ato de respirar é essencial à vida, preparo um pequeno-almoço com alimentos de que gosto mesmo e sento-me a comer enquanto leio. E ali fico, entre meia e uma hora, a ler e a beberricar uma chávena de café de saco acabado de fazer que me traz lembranças da infância.

Esta pode muito bem ser, com um ajuste ou outro, a rotina de milhões de pessoas. Não pretendo ser original. Apenas quero frisar que repito estes momentos a cada dia — acordo propositadamente mais cedo para os desfrutar em absoluto silêncio, daí a prioridade em alimentar e afagar os gatos — com a consciência de que me fazem 100% feliz. Repito o que acima escrevi: estar consciente é diferente de estar consciente de algo. Consciência não é sinónimo de atenção. “Sem consciência, a vida seria como a morte. O estado consciente faz com que valha a pena viver a vida”, afirma a neurocientista Susan Greenfield em Um dia na vida do cérebro – A consciência do nascer ao pôr do sol.

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Duas das pessoas do ramo imobiliário que me ouviram falar sobre felicidade, confidenciaram-me posteriormente, na intimidade de uma mensagem escrita, que praticavam rotinas mais ou menos semelhantes à minha, mas que só depois de me ouvirem descrevê-la e elegê-la como uma satisfação plena, tiveram consciência como eram felizes ao cumprir as suas próprias rotina. “Hoje, até me levantei um bocadinho mais cedo para ter tempo para ler mais umas páginas”, confidenciou-me uma delas.

“Uau, sou um guru do bem-estar que desperta pessoas para a felicidade que coisas banais nos podem fazer sentir”, pensei imediatamente. Estou a brincar, não pensei nada disso, pensei sim na frase de Susan Greenfield — “Sem consciência, a vida seria como a morte. O estado consciente faz com que valha a pena viver a vida” —, e que todos precisamos de ser chamados à terra de vez em quando.

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Todos sabemos que a coberto de um computador ou do ecrã de um telemóvel nos tornamos seres de língua solta, capazes de dizer coisas que nunca diríamos cara a cara — veja-se as caixas de comentários das edições online dos jornais, por exemplo...

Ora, um destes meus recém-conhecidos partilhou também comigo que outras das coisas que o fazia 100% feliz (tenho autorização do próprio para o divulgar) era o momento em que dava a conhecer, nas redes sociais, a concretização de um negócio. Explorei a confidência:

– Mas o momento de satisfação plena não é a realização do negócio e o benefício financeiro que isso lhe traz?

– Não, isso deixa-me satisfeito, mas o que me deixe mesmo feliz é poder dar a conhecer ao mundo essa realização.

– Dar a conhecer ao mundo. O seu mundo das redes sociais, quer dizer… Então e o dinheiro, não interessa?

– Interessa, claro, mas o reconhecimento sabe muito melhor.

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“Derek Sivers já foi músico, produtor, artista de circo, empreendedor, orador e autor de livros”, lê-se na orelha do livro Investe no que te faz feliz – 40 conselhos para o novo empreendedor. Sivers, o autor, desenvolveu um negócio, aCD Baby, que vendeu por 22 milhões de dólares. E o que fez ele com este valor? Doou-o todinho para a caridade. A dada altura do livro, cujos lucros da edição portuguesa (janeiro de 2023, Ideias de Ler) cedeu à Refood Portugal, Sivers escreve: “A felicidade é a verdadeira razão pela qual fazes o que quer que seja, certo? Mesmo que digas que é pelo dinheiro, o dinheiro é apenas um meio para a felicidade, certo? Mas e se estiver comprovado que depois de um certo ponto, o dinheiro não cria nenhuma felicidade, mas apenas dores de cabeça? Poderás ser muito mais feliz com um negócio de um milhão de dólares do que com um negócio de mil milhões de dólares.”

Mais à frente: “Quando decidi vender a minha empresa, eu já tinha o suficiente. Eu vivo de forma simples. Não possuo uma casa, um carro ou até mesmo uma televisão. Quanto menos tenho, mais feliz sou. A ausência de coisas dá-me a liberdade inestimável de viver em qualquer lugar, a qualquer momento.”

A subjetividade da felicidade. A felicidade de simplesmente ser quem realmente somos. A felicidade de ter consciência do que nos faz felizes. E das circunstâncias em que o somos.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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