O que é um cessar-fogo? O que ganha a Rússia com isso?
A Rússia anunciou uma trégua de 36 horas durante os dias de celebração do Natal cristão ortodoxo. A Ucrânia tem de respeitar o cessar-fogo?
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Entrou esta sexta-feira em vigor um cessar-fogo russo na Ucrânia. A decisão foi tomada pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, justificando a trégua com a celebração do Natal cristão ortodoxo. A ideia foi rejeitada por Kiev, que só aceita parar de disparar balas quando os soldados russos abandonarem todos os territórios ucranianos.
O que define um cessar-fogo?
Não há uma definição legal oficial definitiva do que constitui um cessar-fogo, mas consiste na suspensão de actos de violência entre dois lados de forças militares e paramilitares. Neste caso, em que o pacto foi rejeitado de imediato pela Ucrânia, é um cessar-fogo unilateral russo.
Estes acordos partilham sempre um objectivo imediato: parar a violência. Além disso, podem envolver outras duas dimensões: ser usados para gestão e controlo do conflito – para acções como retirada de feridos ou civis de uma determinada região, por exemplo – e ainda como uma porta para a negociação de uma resolução pacífica do conflito.
As tréguas são naturais no desenrolar de conflitos – tanto a proposta como a rejeição. Por esse motivo, Sandra Fernandes, especialista em Ciência Política e Relações Internacionais, desdramatiza a questão da rejeição ucraniana ou os relatos de confrontos: “A questão de tréguas e de tréguas que não são respeitadas é algo extremamente comum. Não há aqui nenhuma situação extraordinária”.
Porquê agora?
Vladimir Putin justificou a decisão de um cessar-fogo de 36 horas com o apelo feito pelo patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo, de uma trégua nas datas natalícias do Natal cristão ortodoxo, celebrado nos dias 6 e 7 de Janeiro.
Sandra Fernandes entende que a acção do Presidente russo é uma manobra de “aproveitamento político” de um “momento emocional” do calendário da igreja ortodoxa, a instituição religiosa dominante tanto na Rússia como na Ucrânia.
“Estas tréguas em contexto de Natal são um aparente sinal de humanidade, muito rapidamente negado pelos ucranianos”, que acusaram os russos de hipocrisia, sublinha a professora da Universidade do Minho.
O que ganharia a Rússia com um acordo de cessar-fogo?
Para Sandra Fernandes, a proposta é, na verdade, uma tentativa de “ganhar tempo num momento de guerra que é extremamente desfavorável em termos militares”.
Os relatórios dos serviços de informação ucranianos indicam que o efeito da mobilização parcial russa já se começa a fazer sentir, com Moscovo a preparar uma ofensiva no norte da Ucrânia com aqueles que se alistaram desde então. Assim, e numa altura em que a Ucrânia também se prepara para receber mais equipamento militar – como os sistemas de mísseis Patriot ou os tanques ligeiros anunciados pela Alemanha, França e Estados Unidos – interessa à Rússia comprar tempo para se organizar.
Ao mesmo tempo, o apelo de Putin serve para semear as primeiras ideias de um regresso à mesa de negociações.
“A ideia de trégua fala muito aos ouvidos que acham que já chega”, refere a especialista. Mesmo entre aqueles que são a favor do apoio à Ucrânia existe quem ache que é necessário resfriar esse ímpeto, retomar “alguma forma de normalidade e de estabilização”.
E a Ucrânia?
Para a Ucrânia, que continua a ter o apoio praticamente incondicional dos seus aliados, a começar pelos Estados Unidos, não havia qualquer vantagem na aceitação de um cessar-fogo de 36 horas. Uma ideia vincada por vários representantes do país, a começar pelo Presidente.
Volodymyr Zelensky desmascarou o apelo russo, dizendo que era uma tentativa de atrasar o avanço das tropas ucranianas no Donbass e utilizar as 36 horas para reforçar a frente de combate com equipamento, munições e tropas.
“Claro que os ucranianos, e uma série de apoiantes da Ucrânia, não conseguem ouvir isso. Para que serviram os mortos, a destruição?”, refere Sandra Fernandes, sublinhando que a rejeição ucraniana do cessar-fogo e o apoio dos vários aliados na decisão também se deve ao facto de muitos entenderem que esta guerra é também “ideológica”.
“O Ocidente, quando está a apoiar a Ucrânia face à Rússia, defende uma visão do mundo e um modelo de convivência internacional e da sociedade em que o indivíduo é importante, a democracia é importante”, continua a professora. Enquanto uns podem estar receptivos à ideia de tréguas, outros consideram que estão a ser “defendidos valores” que vão bem para lá da soberania do Estado ucraniano.
“Não é, de facto, um momento em que os ucranianos tenham algum benefício em alguma trégua. Sobretudo quando é de apenas 36 horas para que os russos festejem o seu Natal ortodoxo. É mais um aproveitamento de comunicação interna para o regime russo”, diz Sandra Fernandes.
A Ucrânia é obrigada a cessar-fogo?
Não. Como referido, o apelo russo foi de imediato rejeitado pela Ucrânia. Assim, não tendo os dois lados chegado a qualquer tipo de acordo, o cessar-fogo anunciado foi unilateral e a Ucrânia não tem de cumprir com essa interrupção das agressões anunciada pela Rússia.
Se a Ucrânia atacar posições russas, os soldados de Moscovo podem responder?
Os responsáveis russos deixaram claro que o pacto de não-agressão diria apenas respeito a ataques – caso as posições russas fossem ameaçadas, iriam ripostar. O responsável russo a região ocupada de Kherson, Vladimir Saldo, referiu que o cessar-fogo era um “gesto de boa-vontade”, mas que a situação na frente de batalha não iria alterar-se por causa disso.
A realidade no terreno é que a trégua decretada por Putin não teve efeitos práticos no terreno. Menos de uma hora depois da entrada em vigor, todas as regiões da Ucrânia ouviram as sirenes de ataque aéreo, e embora não tenha havido registo de bombardeamentos, a música nas linhas da frente continuou a ser o fogo de artilharia.
As primeiras horas do suposto cessar-fogo foram de trocas de acusações: os russos acusam a Ucrânia de ataques durante um período de tréguas que Kiev nunca aprovou, enquanto os ucranianos dizem que as tropas russas abriram várias vezes fogo sem serem provocadas.