O nosso umbigo e o do outro
Hábitos, idiossincrasias, condicionamentos, convicções, julgamentos. Podemos renegar a tudo isto e simplesmente tomar a decisão que terá as melhores consequências? Melhores consequências para quem?
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No epílogo de 2022, descobri, na entrevista que Peter Singer deu ao PÚBLICO (conduzida pelo jornalista Pedro Rios), uma linha filosófica denominada “consequencialismo”. Singer explica que “consequencialismo” é “a visão de que a acção correcta é a acção que terá as melhores consequências” e que esse raciocínio o ajudou “a ter um impacto positivo maior no mundo” e que “ajuda outras pessoas a não decidirem simplesmente agarrar-se a regras que podem estar desactualizadas”.
O termo consequencialismo foi criado por Elizabeth Anscombe no artigo Modern Moral Philosophy (1958), “para defender a tese de que um agente é responsável tanto pelas consequências intencionais de um ato, como pelas não intencionais quando previstas e não evitadas. Portanto, as consequências deveriam ser levadas em consideração quando se faz juízos sobre o correto e incorreto”.
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No dia 1 de janeiro de 2023, alguns minutos depois das sete da manhã (além de não ligar à passagem de ano, sou um ser eminentemente diurno, pelo que adormeci logo que os foguetes se calaram, pouco depois da meia-noite), enquanto encho uma caneca com café bem quente, ocorre-me um trecho da entrevista de Singer: “O consequencialismo ajuda outras pessoas a não decidirem simplesmente agarrar-se a regras que podem estar desactualizadas”.
Preparo-me para beber um gole do café, quando noto algumas borras na superfície negra. “Que estranho, borras num café acabado de fazer…”. Observo-as atentamente. Desenham algumas palavras: “cegueira, extremismo, comodismo, radicalismo, teimosia, birra, caturrice, fanatismo, egoísmo”. Sorrio e pouso a chávena. As palavras permanecem à superfície, encobertas pelo fumo, como quem não quer a coisa, digo eu que à espera que me distraia e as sorva. Finjo-me ausente enquanto as vigio pelo canto do olho. De repente, puxo da colher e agito com vigor o conteúdo da chávena.
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2 de janeiro, oito da manhã, um cãozito de porte médio vagueia pelo meio da estrada, completamente desnorteado. Já o vi por aqui há dois dias, mas parecia conhecer o caminho que levava. Hoje não, é certo que anda à deriva. Perdido. Observo-o da varanda. Enquanto penso no que fazer, agito os braços para chamar a atenção dos condutores. Penso em descer para o recolher e chamar alguém, mas entre descer e contornar o prédio, o mais certo será perder-lhe definitivamente o rasto. E, ainda, que o visse, como apanhá-lo? Entretanto, o cão lá vai ziguezagueando entre algumas travagens mais ou menos no limite. Um automóvel grande e moderno aproxima-se do animal, agora já na berma da estrada. O condutor olha para o cão e carrega vigorosamente na buzina. O cão assusta-se e desata a correr. Revolto-me e esbracejo, mesmo sabendo que não há forma de o condutor reparar em mim. O cão desaparece do meu ângulo de visão. O automóvel grande e moderno também.
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— O que estás aí a fazer? Não tens frio? —, pergunta a Teresa.
— Aquele cão que vimos no outro dia está mesmo perdido. Andava por ali no meio da estrada. As pessoas estavam todas a travar e a ziguezaguear para não lhe acertarem, até que veio um tipo que lhe apitou e o coitado do bicho fugiu a correr! —, relato, indignado.
— Se calhar, foi para ver se se afastava de vez da estrada. Anda, vamos ligar para a Proteção Civil para ver se o recolhem e descobrem de onde fugiu.
Atendem prontamente da Proteção Civil. Garantem que vão reencaminhar o pedido para a divisão de resgate animal e que alguém virá em breve.
Quinze minutos depois da chamada, observo, do meu posto de observação, o piquete do resgate animal percorrer a estrada em marcha lenta. Não consigo ver o cão. Pouco depois, também deixo de ver a patrulha de resgate.
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“Da mesma forma que a tempestade agita e turva as águas, também as paixões perturbam a nossa alma e interferem com a nossa compreensão desta vida”, pode ler-se nas anotações referentes ao dia 21 de outubro do Calendário da Sabedoria de Lev Tolstoi.
O meu juízo sobre a coisa certa a fazer foi condicionado pela minha paixão pelos animais, cães em particular. E por isso julguei o homem que buzinou. Mas qual seria, então, a coisa certa a fazer na circunstância que referi? Desviar o carro do cão? Ou desviar o carro do cão e apitar para o afugentar de uma rua movimentada? Ligar para a proteção civil? Correr para o apanhar enquanto não chega socorro? Qual ou quais destas ações terá as melhores consequências? Como saber qual a ação correta?
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Já corri atrás de um cão para o apanhar. Fi-lo em criança, na adolescência e mesmo em adulto. Não é fácil jogar à apanhada com um cão. O cão ganhou-me sempre. Sempre que um dos meus cães fugia, eu corria atrás dele. E perdia a corrida. O mesmo padrão repetido uma e outra vez. Uma continuidade do que sempre fiz. Um disco riscado. “Desisto, eu corro atrás dele e ele foge cada vez mais”, desabafei um dia, ofegante, com o meu pai depois de o Rex fugir outra vez para a estrada principal. “Deixa o portão aberto, ele sabe o caminho”, respondeu-me o meu pai, tranquilíssimo. Dois minutos depois, voltei a sair para procurá-lo. O Rex estava a beber água como um doido junto à casota. Repreendi-o, como sempre fazia. E abracei-o. Como ainda hoje faço. (em pensamento)
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Hábitos, idiossincrasias, condicionamentos, convicções, julgamentos. Podemos renegar a tudo isto e simplesmente tomar a decisão que terá as melhores consequências? Melhores consequências para quem? Para mim ou para o Rex? Não parece nada fácil. A resposta correcta será, segundo depreendo das palavras de Peter Singer, para ambos. Pensar no nosso umbigo e no do outro ao mesmo tempo. Compreender a vida do outro. Eis um bom mote para o Ano Novo.
Entretanto, o cãozito não voltou a aparecer por aqui.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990